No Japão dos anos 1990, Jake Aldestein (Ansel Elgort) é o primeiro gaijin — estrangeiro — a conquistar uma vaga na equipe do Meicho Shimbun, jornal de Tóquio que é uma versão fictícia dos grandes diários nipônicos. Alocado na cobertura policial, o americano fala japonês fluentemente e tem ambição de se tornar um repórter investigativo. Não será tarefa simples. Dentro da redação, ele enfrenta a animosidade de chefes e colegas. Nas ruas da capital do país, vai se metendo de modo temerário nos interesses da Yakuza, a máfia japonesa — a qual, logo verifica o estrangeiro incauto, compõe-se de uma miríade de gangues que seguem códigos de honra e convivência rígidos, mas travam disputas sangrentas entre em si. A política, a imprensa — nada foge aos tentáculos dessas organizações, fazendo da atividade jornalística ali algo muito distinto do que ocorre no Ocidente.
Tóquio proibida: Uma viagem perigosa pelo submundo japonês – Jake Adelstein
Inspirada livremente na história de um jornalista americano de mesmo nome, a mesmerizante Tokyo Vice — que acaba de estrear sua segunda temporada na plataforma Max — puxa um cordão de novas séries capazes de iluminar algo que raramente se vê na tela: um Oriente real que desafia os lugares-comuns. Assim como acontece com o protagonista de Tokyo Vice, o espectador da ótima Expatriadas, do Prime Video, é convidado a observar meandros da vida asiática como um estranho no ninho — no caso da personagem de Nicole Kidman, a mulher americana de um executivo abalada por uma tragédia em Hong Kong. Uma das matrizes literárias dessa visão outsider acaba de ganhar nova versão de sucesso com o drama medieval Xógum: A Gloriosa Saga do Japão, do Star+. Já o thriller de espionagem O Simpatizante, recém-lançado também no Max, explora a Guerra do Vietnã por um ângulo desconcertante: o conflito é visto não pelo prisma dos americanos, mas dos vietnamitas.
A nova safra oriental chama atenção por sua alta qualidade, e deve ser vista como parte de uma ofensiva — alguns dirão rendição — de Hollywood diante do avanço da dramaturgia de países como a Coreia do Sul e o Japão nos últimos anos. Dos doramas bobinhos a séries como a impactante Round 6, da Netflix, a produção asiática surfa na demanda crescente de imigrantes dos Estados Unidos e da Europa que querem se ver na tela. De acordo com dados divulgados em 2022 pela Nielsen, a representatividade asiática em programas americanos dobrou de 2020 para 2021.
The Expatriates: A Novel – Janice Y. K. Lee
O movimento dos produtores também visa ao mercado interno das nações da Ásia, com sua força de consumo impressionante. Uma pesquisa feita pela empresa Media Partners Asia no ano passado mostrou que metade das visualizações de conteúdo coreano foi consumida por pessoas de países da região, como Indonésia, Japão, Filipinas, Tailândia e Vietnã. Série mais vista da história da Netflix, com 2,6 bilhões de visualizações só nos primeiros três meses, Round 6 chegou a ser minimizada como fenômeno passageiro. O interesse do público em obras coreanas, porém, continuou a se multiplicar, como provam os êxitos do dorama Uma Advogada Extraordinária e do recente hit Parasyte: The Grey — atual série mais vista em língua não inglesa da plataforma, com 6,3 milhões de visualizações só na semana de estreia.
Não por acaso, outros estúdios começaram a se movimentar para criar obras que não só contassem com atores asiáticos como também abusassem de locações naqueles países. Ambientado no início da Guerra do Vietnã, O Simpatizante segue o franco-vietnamita Capitão (interpretado pelo australiano de ascendência vietnamita Hoa Xuande), como um espião comunista infiltrado no regime de Saigon, o Sul capitalista então apoiado pelos Estados Unidos. Quando a capital é tomada pelos revolucionários comunistas do Norte, o protagonista é orientado a se refugiar no interior americano junto com os líderes derrotados para continuar acompanhando seus passos de perto. A saga é enriquecida por rostos conhecidos como Robert Downey Jr., que vive um orientador do jovem.
O simpatizante – Viet Thanh Nguyen
Se no passado o tratamento que Hollywood dispensava à Ásia envolvia representações toscas e satíricas, hoje se vê o interesse genuíno de apresentar histórias relevantes. Inspirada no livro homônimo de 1975 de James Clavell, Xógum, do Star+, narra a jornada de um europeu que naufraga na costa do Japão e é feito prisioneiro até se tornar uma figura política respeitada. A versão original de 1980, protagonizada por Richard Chamberlain e Toshirô Mifune, abusava dos estereótipos e da cafonice. Já a produção da Disney traz um retrato mais fiel do período feudal dos séculos XVI e XVII. A abordagem do drama com Hiroyuki Sanada e Cosmo Jarvis é tão respeitosa que arrancou elogios até da imprensa japonesa.
Round 6: por dentro da série – Park Minjoon
Para além da tentativa de atrair um público mais ávido por histórias do Oriente, essas séries espelham uma nova realidade geopolítica nas telas: a Ásia desponta como o grande motor da economia do século XXI, e só agora americanos e europeus — que sempre enxergaram tais culturas segundo sua visão de mundo — começam a se dar conta do quanto desconhecem rivais como a China ou a Coreia. É uma realidade cultural fascinante, mas também cheia de peculiaridades desafiadoras, que se descortinam em tramas como Expatriadas, que mostra a adaptação conturbada da americana Margaret (Nicole Kidman) como imigrante em Hong Kong. O Japão que emerge de Tokyo Vice também requer do repórter estrangeiro a sabedoria de despir-se de suas certezas ocidentais para conseguir se mover no país. A Ásia ainda é um enigma para muitos — e desvendá-la não é só diversão, mas questão de sobrevivência.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2024, edição nº 2889