Em seu terno italiano impecável e exalando testosterona, o mafioso Dwight Manfredi se surpreende ao entrar numa loja de maconha em Tulsa, no estado americano de Oklahoma. Após 25 anos preso, ele saiu da cadeia e foi enviado por sua gangue de Nova York para o interior do país, com a missão de criar uma nova célula criminosa. O tempo no xilindró, no entanto, cobra seu preço. Sem acreditar que a maconha hoje é legalizada em boa parte dos Estados Unidos, Manfredi coage Bhodi (Martin Starr, de Silicon Valley), infeliz proprietário da loja, a contratar seus serviços de “segurança”. Quando o real vigia do lugar tenta intervir, o mafioso o derruba com apenas um golpe. Fosse qualquer outro ator na pele do personagem, a cena não destoaria de tantas que unem pancadaria a humor pastelão. Mas ocorre que é Sylvester Stallone quem dá vida ao mafioso, e não um zé-ninguém dos filmes de ação — e causa espanto e certa empolgação idílica ver o astro de Rocky, o Lutador (1976) e Rambo (1982) distribuindo pancadas aos 76 anos em Tulsa King, série que estreia no Paramount+ no domingo de Natal, 25 de dezembro.
Em entrevista a VEJA, Stallone confessou que se identifica com o ocaso de um personagem tão deslocado no tempo e espaço. “Sou esse dinossauro. Sou a velha guarda”, disse (leia a entrevista). Um dos ícones do cinema dos anos 1980, ele chegou ao fundo do poço na década seguinte — quando, sem convite para bons filmes, amargou pífias bilheterias em comédias insossas como Pare! Senão a Mamãe Atira (1992). Nos anos posteriores, fez mais tramas esquecíveis e foi dado como morto pela crítica. Na última década, porém, o ator percebeu que não precisava se reinventar para continuar relevante. Poderia continuar vivendo heróis fortões, desde que atentasse para a melhor vacina contra chacotas: não se levar a sério.
Quadro Sylvester Stallone Rambo
Como resultado, Stallone produziu e estrelou a franquia Os Mercenários, cujo roteiro raso serviria só para justificar a reunião de machões dos anos 80 como Bruce Willis, Arnold Schwarzenegger, Wesley Snipes, Jean-Claude Van Damme e Chuck Norris em lutas hipercoreografadas. Ironicamente, a franquia pavimentou o caminho para uma ressurreição dramática do ator, que reviveu em 2015 seu principal personagem, o lutador Rocky, no filme Creed: Nascido Para Lutar, que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de ator coadjuvante. O sucesso foi tão notável que, em 2018, o filme ganhou continuação.
Em Tulsa King, Stallone dá um novo passo ao estrelar uma série de TV como mafioso — tipo de valentão que, em cinco décadas de carreira, ele jamais fez. Era um sonho, aliás, que alimentava desde a juventude, lá no início dos anos 1970, quando pediu a Francis Ford Coppola um papel de figurante em O Poderoso Chefão — mas foi recusado por “não parecer italiano” o suficiente. Criada por Taylor Sheridan (do sucesso Yellowstone), Tulsa King acompanha Dwight Manfredi em sua atrapalhada operação em Tulsa. Aí reside a graça da série: no interior, ele encara um mundo diferente daquele a que estava acostumado na metrópole. A série explora, assim, um humor típico do “peixe fora d’água”, com piadas que satirizam os estereótipos locais. Em uma delas, ele leva um banho de água benta de uma senhora carola por dizer em voz alta que um gafanhoto “do tamanho de meu órgão sexual” voou em seu rosto.
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Para além de lidar com os costumes caipiras, o mafioso tem dificuldade em se adaptar a um mundo que se transformou radicalmente em seus anos na prisão. Numa cena impagável, ele tenta entender os novos pronomes para se referir a pessoas não binárias. Lida, ainda, com o peso da idade: quando vai para a cama com uma mulher mais nova e diz que se lembra do dia em que John Kennedy foi baleado, ela foge horrorizada: “Não é diferença, é um desfiladeiro de idade”.
Nos dez episódios de Tulsa King, Stallone terá pela primeira vez na carreira a chance de desenvolver uma narrativa ampla, que vai requerer mais que músculos para conquistar a audiência. A julgar por sua energia e bom humor, não será uma surpresa se o lutador triunfar dessa vez.
Publicado em VEJA de 21 de dezembro de 2022, edição nº 2820
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