‘Pra cachorro’, ‘pra burro’: como explicar essas expressões?
“Professor, gostaria de saber de onde vem a expressão ‘bom pra cachorro’ como indicativo de algo muito legal ou divertido, enfim, bom pra cachorro. Desde já agradeço.” (Sandra Idalina) A consulta de Sandra é boa pra cachorro porque nos põe diante de uma expressão idiomática que chama a atenção pela ausência nos clássicos da fraseologia […]
“Professor, gostaria de saber de onde vem a expressão ‘bom pra cachorro’ como indicativo de algo muito legal ou divertido, enfim, bom pra cachorro. Desde já agradeço.” (Sandra Idalina)
A consulta de Sandra é boa pra cachorro porque nos põe diante de uma expressão idiomática que chama a atenção pela ausência nos clássicos da fraseologia brasileira. Não exatamente “bom pra cachorro”, como ela supõe, mas apenas “pra (ou para) cachorro”. O adjetivo no caso é bom, mas poderia ser outro. Ou mesmo um verbo.
O que se mantém é essa locução adverbial bem brasileira que significa “muito, em grande quantidade ou com grande intensidade”. Antiguinha, mas ainda atual, ela pode ser encontrada nas mais variadas construções: “trabalhei pra cachorro”, “fica longe pra cachorro”, “feio pra cachorro”, “bonito pra cachorro” etc.
A aridez bibliográfica sobre o tema nos deixa, a princípio, no mato sem cachorro – para permanecer no campo das expressões idiomáticas. Cheguei a considerar com algum entusiasmo a possibilidade de estarmos diante de um eufemismo, com a palavra cachorro sugerindo e ao mesmo tempo tomando o lugar de outras menos publicáveis, como ocorre em “pra caramba”, de idêntico sentido.
Não convém descartar por completo a hipótese eufemística, mas é preciso reconhecer que ela perde força quando levamos em conta uma expressão sinônima e obviamente correlata: “pra burro”. Nesta locução, que é pelo menos tão difundida quanto “pra cachorro”, o nome do animal de carga não parece substituir palavrão nenhum.
Na verdade, cachorro e burro são apenas dois elementos num padrão popular com grande número de variações: outros exemplos, entre tantos, são “pra danar”, “pra dedéu”, “pra cacete” e até (como aprendo no “Dicionário do Nordeste”, de Fred Navarro) “pra peste”. O que pode sugerir uma formação meramente expressiva em que “cachorro”, como “dedéu”, tenha algo de gratuito. Será perda de tempo procurar dar conta de seu sentido?
Acredito que não. Encontro a hipótese que finalmente me parece satisfatória para explicar “bom pra cachorro” numa dissertação acadêmica do linguista Fabiano Santos Saito, da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), sob o título pouco atraente de “Algumas expressões idiomáticas hiperbólicas do Português Brasileiro e suas relações com os frames de Avaliação e Massa Quantificada” (em pdf, aqui).
A tese favorecida por Saito, que tem a vantagem de explicar tanto o cachorro quanto o burro, é a de que o sentido de “em grande quantidade” brotou na cultura rural brasileira da ideia de uma grande quantidade de comida, um excesso, uma sobra da qual até os animais da casa se beneficiavam. Em suas palavras, “comida pra cachorro” e “comida pra burro” poderiam ser desdobradas como “comida que sobrou para cachorro comer” e “comida que sobrou para burro comer”
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