Um dos mais difundidos mitos contemporâneos relativos a uma palavra conta a inspiradora historinha de que o termo chinês weiji, que significa “crise”, é um ideograma formado pela junção de dois outros: o negativo “perigo” (wei) e o promissor “oportunidade, ocasião propícia” (ji) – aqui ao lado nas formas tradicional (o par de cima) e simplificada.
Pronto: eis a tal “milenar sabedoria chinesa”, esse vasto baú mitológico, resumindo em poucos traços de nanquim uma lição caríssima a consultores empresariais e escritores de autoajuda, personagens que se tornaram os maiores responsáveis pelo sucesso ocidental da expressão. Cada crise pode ser a perdição, mas também a glória; a morte, mas também o renascimento. Tudo depende de como ela seja administrada por governos, empresas ou cidadãos.
Bonito, não? O único problema é que não é bem assim. Estudiosos sérios de mandarim não se cansam de denunciar (aqui e aqui, por exemplo) a confusão, que se supõe ter acometido – eis o momento decisivo para sua consagração – algum estudante de línguas orientais mais empolgado do que rigoroso da equipe de assessores do presidente americano John Kennedy. Orador brilhante, Kennedy gostava de repetir essa pequena lenda linguística em seus discursos.
Os sinólogos ensinam que, embora signifique mesmo oportunidade quando se junta a hui para formar jihui, o ideograma ji, sozinho, está longe de ter o sentido positivo carregado por essa palavra. Entre os papéis que pode assumir está o de significar “momento crucial”. Pois é: “momento crucial de perigo” vem a ser uma boa definição de crise e uma sóbria tradução literal de weiji. Como se vê, nada que autorize ninguém a sair à caça de vantagens quando o bicho pega.
Como tem menos graça, reconheço que isso dificilmente vai impedir o mal-entendido de continuar se propagando. Fica o registro, de todo modo, porque sempre há quem prefira o rigor.
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Uma primeira versão do texto acima apareceu nesta coluna em junho de 2011.