A palavra de hoje, cigano, está aqui menos pela curiosidade etimológica do que por razões antropológicas. Sua origem guarda algum interesse, mas não tanto quanto o triste destino que acabou tendo em nosso país: o de pivô numa ação grotesca em que o Ministério Público Federal pede a apreensão do dicionário Houaiss por trazer, entre as acepções do vocábulo, esta, devidamente identificada como pejorativa: “que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador”.
Supor que dicionários inventem os sentidos das palavras, em vez de simplesmente registrar com o maior rigor possível os usos decididos coletivamente por uma comunidade de falantes ao longo de sua história, é uma crença obscurantista e autoritária. Sua origem deve ser buscada no cruzamento entre a velha ignorância e uma doença intelectual mais recente: a ilusão politicamente correta de que, para consertar as injustiças do mundo, basta submeter a linguagem à censura prévia.
A ação partiu de Uberlândia, no Triângulo Mineiro. A última do gênero a ter repercussão semelhante – e que felizmente não deu em nada, como esta também não deve dar – originou-se há cerca de dez anos em Campinas (SP), iniciada por cidadãos de origem judaica contra o mesmo dicionário, que no verbete judeu registra a acepção pejorativa de “pessoa usurária, avarenta”.
Não deve ficar nisso. O Brasil é um país vasto, e, como se sabe, tem poucos problemas verdadeiros, o que deixa ao MPF tempo de sobra para garimpar outros verbetes insultuosos no melhor, mais completo e mais rigoroso dicionário da língua portuguesa. Seguem algumas ideias para poupar aos esclarecidos procuradores parte do trabalho:
1. Baiano – tolo, negro, mulato, ignorante, fanfarrão etc.
2. Japonês – indivíduo estranho, forasteiro ou parasita.
3. Francês – falsamente delicado; hipócrita, fingido.
4. Polaca – mulher da vida, meretriz.
E isso é só o começo! Esses lexicógrafos deviam estar todos atrás das grades, não?
Quanto à etimologia: importamos a palavra cigano no início do século 16 do francês antigo cigain, mas sua raiz mais profunda deve ser buscada no grego athígganos (“intocável”), que o Houaiss define como “nome dado a certo grupo de heréticos da Ásia Menor, que evitava o contato com estranhos, a que os ciganos foram comparados quando de sua irrupção na Europa Central”.