Depois da publicação do novo decreto dos mecanismos de fomento à cultura, artistas do Brasil enfrentarão agora um duro teste: reconstruir o ambiente cultural, as instituições de cultura e a arte e desfazer a equivocada imagem de que artistas “mamavam nas tetas gordas” da Lei Rouanet, para usar a chula e errada expressão do ex-presidente Jair Bolsonaro. Não é um desafio trivial. Foram quatro anos de desmonte da cultura e tentativas de criminalização e intimidação de artistas.
O espírito de otimismo da cerimônia simbólica no Theatro Municipal do Rio espalha-se entre artistas, produtores e gestores culturais. A coluna conversou com alguns deles. “O novo decreto e as modificações implementadas mostram ao Brasil que os porta-vozes do ódio à cultura foram e continuarão a ser derrotados”, diz, por exemplo, a produtora e gestora cultural Mari Stockler, cofundadora, com a produtora Paula Lavigne, do coletivo 342Artes. “É o momento de reconstruir a cultura brasileira, com mecanismos de financiamento compatíveis com a grandeza e a complexidade do país.”
Tanto Mari Stockler quanto, por exemplo, Carlos Paiva, gestor e pesquisador do Observatório de Economia Criativa da Bahia, chamam a atenção para um ponto que o resumo das manchetes da semana passada não deu conta: o decreto vai muito além da Lei Rouanet, a mais longeva, mais conhecida e também mais atacada.
Além de ampliações na Rouanet, o decreto regulamenta as leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc e o programa Cultura Viva. Uniformiza a execução de recursos. Define melhor regras e procedimentos para todos os mecanismos de fomento cultural. Reforça procedimentos de prestação de contas já presentes na Lei Paulo Gustavo. E, dando-lhe um caráter federalista, dá um norte às políticas estaduais e municipais de cultura.
“O decreto transforma em realidade diversos debates que estavam acontecendo há quase uma década, dá coerência a eles, com regras únicas e segurança jurídica para todos”, resume Carlos Paiva, que se debruçou sobre o texto do decreto gestado no Ministério da Cultura e na Advocacia Geral da União (AGU) para listar os méritos do que foi anunciado.
De novo, algo nada trivial.
Paiva destaca ainda o fato de que o decreto absorve experiências locais bem-sucedidas, como a natureza plurianual de certos projetos. Até aqui, em geral todo fomento é pensado sob a lógica de projeto — algo que é, por definição, pontual. Ocorre que muitas atividades são de natureza continuada. É o caso de um espaço cultural, um grupo de dança, uma bienal de arte, uma orquestra, um festival de cinema anual. Os organizadores de um festival com 20 anos de existência chegam ao 21º ano e precisam começar do zero no esforço de captação de recursos.
A partir de 2007, a Bahia começou a adotar mecanismos que consideram essa continuidade. O decreto absorve essa experiência.
Mari Stockler ressalta outro ponto: a descentralização de recursos, que está na essência da Lei Paulo Gustavo, pode ser reforçada com o decreto. Criada no contexto das sequelas deixadas pela pandemia da Covid-19, a lei prevê o repasse de recursos (R$ 3,8 bilhões) de forma descentralizada. “Uma lei descentralizada e com investimento direto, sendo bem utilizada, poderá atender a um Brasil diverso”, diz ela.
Segundo Mari, os ataques à cultura dos últimos anos fazem parte da cartilha da extrema direita internacional. O Brasil se viu parte dessa cartilha. O espírito armamentista do governo Bolsonaro escolheu os artistas como alvo e viu a Lei Rouanet com um potente projétil – expressão usada por Mari Stocker, por este colunista e pelo advogado e gestor cultural Guilherme Varella, hoje professor da Universidade Federal da Bahia, para descrever, em artigo publicado no ano passado, o que apontávamos como a destruição da cultura como agenda eleitoral.
Retaliações, estrangulamento de instituições “inimigas”, direcionamento de recursos, novas formas de censura e ataques ao segmento artístico foram algumas das medidas promovidas pelas autoridades públicas do governo anterior. Um mapa desses ataques pode ser visto no site do Mobile (Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística), criado por uma coalizão de organizações.
Ao lado da Fundação Palmares e do Iphan, a Rouanet tornou-se peça central da pregação anticultura. A crítica principal era de que artistas só teriam êxito por obra e graça da Lei Rouanet.
Nada mais falso. Primeiro porque os beneficiados não se restringem a poucos artistas e celebridades. Segundo porque a própria Lei Rouanet foi concebida como um sistema, do qual fazem parte o braço de mecenato (com incentivo fiscal pelo Estado), o Fundo Nacional de Cultura (com investimento direto do Estado) e o Programa Nacional de Apoio à Cultura (criado para ampliar o acesso à cultura e à produção cultural em todas as regiões). O mecenato sempre foi a parcela mais conhecida da Rouanet.
Gilberto Gil e Juca Ferreira, quando ministros da Cultura, chegaram a propor uma reforma na tentativa de solucionar problemas de concentração regional na distribuição de recursos, uma distorção que se manteve ao longo do tempo. A defesa da descentralização de recursos vem daí – e isso se resolve mais com o investimento direto do que com o mecenato. Como a Lei Paulo Gustavo se ancora nisso, e com recursos suficientes para alguns anos, uma parte do problema pode ter sido resolvido com o novo decreto.
E impõe uma tarefa para os próximos anos: garantir recursos para o investimento direto entre os mecanismos previstos e escapar das distorções regionais. Como disse Chico César a Valmir Moratelli, de VEJA Gente, é fundamental uma paridade orçamentária entre o investimento direto e o mecenato.
Mas é isto: o primeiro – e histórico – passo foi dado.