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O VESTIBULAR CRIMINOSO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA FRAUDA A CONSTITUIÇÃO E ATÉ MÚSICA DE CAETANO VELOSO

A Universidade de Brasília, como já escrevi aqui, é a morada do aiatolá Marcos Bagno, aquele professor que já fez fama — e, calculo aqui, fortuna razoável — com suas fabulações sobre o preconceito lingüístico. Trata-se de uma tese intelectualmente vigarista porque mistura dois domínios: os estudos de lingüística, que têm valor descritivo, não normativo, […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 11h38 - Publicado em 14 jun 2011, 07h21

A Universidade de Brasília, como já escrevi aqui, é a morada do aiatolá Marcos Bagno, aquele professor que já fez fama — e, calculo aqui, fortuna razoável — com suas fabulações sobre o preconceito lingüístico. Trata-se de uma tese intelectualmente vigarista porque mistura dois domínios: os estudos de lingüística, que têm valor descritivo, não normativo, e os de gramática. Bagno inventou a existência de um preconceito para, então, combatê-lo, como se as nossas escolas fossem verdadeiros centros de tortura da linguagem popular. Não! O nosso problema é bem outro: falta de estrutura e de capacitação intelectual para ensinar a norma culta aos alunos, o que não implicaria desrespeitar, obviamente, as várias “falas” que há no país. A questão é falsa. Os exploradores da boa-fé e da miséria alheias, no entanto, são verdadeiros.

O tema ganhou relevância recentemente por causa do livro “Por Uma Vida Melhor”, da professora Heloísa Ramos, distribuído pelo MEC. Seguindo as pegadas de Bagno, Heloísa faz a mesma confusão de domínios e confere ao erro o valor de uma norma… alternativa! Ao aluno caberia escolher o ambiente adequado para empregar a norma culta ou a outra. Trata-se de uma imbecilidade teórica porque a) ninguém precisa de escola para aprender a errar; b) esse tipo de debate interessa a acadêmicos, sim, mas é uma bobagem levá-lo a alunos dos ensinos fundamental e médio.

Pois bem. A UnB, onde fica o bunker intelectual de Bagno, realizou vestibular neste fim de semana. O tema da redação foi este:
“Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó: a língua de um povo não se faz com preconceito nem com prescrição”.

Epa! “Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó” é trecho de uma música de Caetano Veloso chamada “Língua” (segue a letra no pé do post). Caetano não gosta de mim. Não ligo. Ele não é o único. Mas eu gosto dessa canção e já a usei em sala de aula quando era professor. A música fez um relativo sucesso, boa parte dos alunos a conhecia — de lá pra cá, o padrão do que a meninada ouve caiu muito —, e ela ilustra algumas questões interessantes sobre a língua portuguesa. O trecho “Flor do Lácio sambódromo, lusamérica latim em pó” remete à perífrase pela qual é conhecido o português — “Última Flor do Lácio” —, exibe uma palavra criada no Brasil com a fusão de “samba”, que veio do banto, e “dromo”, do grego “drómos”, lugar de corrida —  ou “pista”, por associação de idéias. O Brasil criou uma “pista do samba”, depois “passarela do samba”. A realidade nova recorreu ao estoque de referências da língua para criar uma palavra nova.

Os primeiros versos da letra anunciam: “Gosto de sentir a minha língua roçar/ a língua de Luís de Camões/ gosto de ser e de estar”…  Como se vê, o texto começa com o apelo a um clássico. Em seguida, o autor destaca o fato de que, em português, temos palavras distintas para “ser” e “estar”, à diferença de algumas línguas modernas.  A música traz muitas questões lingüísticas que podem render uma boa conversa em sala de aula e canta as glórias de uma língua viva, dinâmica. O “lusamérica” remete ao óbvio — somos o único país das Américas a falar português —, e o “latim em pó” lembra a origem do idioma. Note-se: sem entrar no mérito do que diz e escreve Caetano, ele se expressa sempre com absoluta correção.

Pouco me importa a intenção do autor ou o que ele possa dizer agora — já que é meio chegadito a “causas progressistas” —, mas o fato é que a música não autoriza os energúmenos que elaboraram a prova a concluir que ela é expressão da tese de que “a língua de um povo não se faz com preconceito nem com prescrição”. A propósito: com preconceito, não se faz mesmo. Não conheço nada de bom que se faça com ele. Mas a língua se faz, sim, com prescrição.

É neste ponto que se revela a fraude intelectual da canalha: tomar a “prescrição” como sinônimo de “preconceito”. É o caráter prescritivo de uma língua que assegura a sua unidade. A palavra “sambódromo” vem bem a calhar. Surgiu de uma realidade física e cultural nova, mas se formou a partir, ora vejam, de conceitos firmados segundo uma… prescrição! Essa gente frauda o debate e frauda até a música de Caetano Veloso.

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Mas isso ainda é o de menos. Notem que o examinador não pede nem mesmo que o aluno se posicione diante de um debate. Ao contrário. Para os extremistas, a língua não pode ser prescritiva, mas uma redação pode: O TEMA PRESCREVE A OPINIÃO DO ALUNO. E ai daquele que discordar da tese! Estamos, pois, diante de duas seleções combinadas: a primeira escolhe os alunos que concordam; a segunda, os mais hábeis, espero eu, entre os que concordam.

Finalmente, fico cá a imaginar quais serão os critérios de correção. Por uma questão de coerência, tudo aquilo que a prescrição apontar como erro — a norma culta — deve ser ignorado pelo examinador, certo? Mais: estamos diante da possibilidade se um aluno que se expressa com absoluta correção, mas que discorda da tese, ser preterido em benefício de um quase analfabeto que diz amém!

A UnB fez uma prova para servir de desagravo a seu aiatolá e impôs uma opinião aos alunos. Não basta dominar um conjunto de conhecimentos para ser admitido na UnB. É preciso concordar com eles. No que respeita à liberdade de expressão, trata-se de uma prova criminosa, que viola o Artigo V da Constituição. Estão previamente censurados todos os que não concordam com os extremistas do professor Marcos Bagno.

*

Segue a letra de “Língua”

Gosto de sentir a minha língua roçar
A língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar
A criar confusões de prosódia
E um profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior
E quem há de negar que esta lhe é superior
E deixa os portugais morrerem à míngua
Minha pátria é minha língua
Fala Mangueira

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Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
o que pode
Esta língua

Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas
Cadê? Sejamos imperialistas
Vamos na velô da dicção choo choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Hollanda nos resgate
E Xeque-mate, explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os “deles” e os “delas” da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Sejamos o lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em Ã
De coisa como rã e ímã, ímã, ímã…
Nomes de nomes, como Scarlet Moon de Chevalier
Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé e Maria da Fé
e Arrigo Barnabé


Incrível
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Se você tem uma idéia incrível,
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível
Filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo,
E o recôncavo, e o recôncavo, e o recôncavo
Meu medo!

A língua é minha Pátria
E eu não tenho Pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta e prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
Será que ele está no Pão de Açúcar
Tá craude brô, você e tu lhe amo
Qué que’u faço, nego?
Bote ligeiro
Nós cantofalamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem

Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem,
que falem.

Texto publicado originalmente às 22h11 desta segunda
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