Alguns dos bons amigos que tenho censuram-me por ser muito pouco entusiasmado com a dita “Primavera Árabe”. Conheço pessoas que têm parentes que moram na Síria, por exemplo, sem quaisquer motivos especiais para defender o carniceiro Bashar Al Assad. Elas me asseguram que o governo enfrenta, de fato, milícias armadas — o que não o torna um “coitadinho” — e que a Irmandade Muçulmana está muito mais presente na organização dos protestos do que admite a imprensa ocidental. Também não aposto uma vírgula na “democratização” da Líbia — considero desastrada a intervenção de EUA, Grã Bretanha e Otan — e acho gigantesca a chance de os radicais islâmicos seqüestrarem a “revolução” egípcia. Feita a ressalva, ponto, parágrafo.
Uma coisa é o governo brasileiro expressar os princípios gerais da autodeterminação dos povos e seus votos de que os países encontrem, eles próprios, solução para os conflitos internos — desde que não ameacem a ordem mundial (ou não extremem a sua desordem), como é o caso Irã. Outra, distinta, é se meter, ainda que retoricamente, no atoleiro para posar de “protagonista”. O Brasil já vinha sendo censurado mundo afora por resistir a uma resolução mais incisiva contra Bashar Al Assad na ONU. Mas ainda estava num terreno que me parecia aceitável, até prudente. Ontem, revelando, afinal de contas, a sua real natureza, o governo, por intermédio do Itamaraty, enfiou o pé na jaca. Na prática, ficou claro que a “doutrina” Celso Amorim — que está de volta — continua em vigor.
Um grupo de representantes do Brasil, África do Sul e Índia esteve com o ditador. Um comunicado foi emitido defendendo a soberania da Síria, condenando a violência e apostando nas reformas prometidas. O regime obviamente usou o encontro e o comunicado para demonstrar que o governo do país não está isolado. Muito bem: qual é o ponto? Eu estou entre aqueles que acreditam que a eventual deposição de Bashar Al Assad pode tornar a emenda muito pior do que o soneto. Vamos ver o mapa. A Síria não é a Líbia; ocupa uma posição estratégica no conflito do Oriente Médio. Como sempre digo tudo, vamos lá: considero irresponsáveis as declarações peremptórias de líderes europeus e, claro!, de Barack Obama, o amador enfatuado, cobrando simplesmente a saída de Assad. E entra quem?
Mas isso não quer dizer que o Brasil devesse se aproximar, como fez, de um carniceiro como o ditador da Síria — porque ele continua a ser um tirano asqueroso, independentemente das questões de natureza estratégica. O Itamaraty, para não variar, está apostando mais no protagonismo doidivanas que o tem caracterizado do que numa solução. Duvido — porque não vejo fortuna crítica que me leve a pensar o contrário — que o governo brasileiro esteja apenas sendo cuidadoso porque teme a expansão do fundamentalismo islâmico.
A partir de agora, é inescapável, o Brasil está diplomaticamente comprometido com as ações de Bashar Al Assad e com os seus métodos de resolução de conflitos. O que estou dizendo é que era perfeitamente possível contestar a proposta de americanos e europeus — “Fora Assad” — sem dar o pé ao ditador. Como? É, mais uma vez, o Itamaraty mete os pés pelas mãos.