Impressionante a agressividade de alguns comentários por conta dos dois posts que escrevi sobre o assassinato do cartunista Glauco e de Raoni, seu filho. Impressiona porque estou me limitando a apontar algumas contradições numa história trágica, mas cujo enredo poderia ser muito simples. Alguns também estão furiosos porque contestei, e o farei de novo — não tentem me intimidar com correntes de opinião porque isso nunca funciona — que o daime seja uma “doutrina cristã”.
Há dois líquidos que podem fazer parte de narrativas cristãs: água e vinho. Fora disso, é invenção sem lastro histórico. A liberdade de expressão garante que as pessoas chamem o que bem entenderem de “cristianismo”. Um mínimo de rigor dirá que afirmar que o daime é uma “doutrina cristã” é uma bobagem.
CONTRADIÇÕES
Começo pela questão mais importante no momento, que é descobrir, afinal de contas, o que aconteceu, com a conseqüente punição do assassino. As contradições vão se avolumando.
1 – O advogado – A primeira e mais óbvia atende pelo nome de Ricardo Handro, advogado de Glauco. Ele tem de vir a público para explicar por que concedeu uma entrevista afirmando que se tratava de uma ação de bandidos comuns. A imprensa quer fazer de conta que isso não aconteceu e dar um chá de sumiço no rapaz? É uma vergonha que aja assim. Ontem, no Fantástico, “Madrinha Bia”, mulher de Glauco, deu a sua versão dos acontecimentos. Quando Handro concedeu a sua entrevista, certamente já havia falado com a viúva. Foi a polícia que descobriu que Cadu, o assassino, era um “conhecido da família”.
2 – O acompanhante – Eu havia estranhado que alguém em surto, dizendo-se Jesus, conseguisse arrastar um parceiro em sua maluquice. Ontem, Felipe de Oliveira Iasi, que acompanhou Cadu à casa de Glauco, apresentou-se à Polícia. Segundo Bia, ele não parecia “muito normal porque estava com o olho muito arregalado, sabe?”. Sei. A viúva diz que ele assistiu a tudo, impassível, sentado no sofá. E que saiu de lá em companhia do assassino.
3 – Onde ficou Felipe? – O advogado de Felipe afirma que não foi assim. Seu cliente teria ficado no carro e deixado o local antes de saber do duplo homicídio. Vamos ver: o rapaz é coagido pelo amigo, ameaçado por uma pistola, a conduzi-lo até a casa do cartunista. Tão logo o surtado desce do carro, Felipe, em vez de ir embora e chamar a polícia, preferiu ficar por ali, dando um tempo…
4 – A versão de Juliana – O curioso é que, segundo o delegado Archimedes Cassão Veras Júnior, Juliana, enteada de Glauco e filha de “Madrinha Bia”, endossa, nesse particular, a versão de Felipe, não a da mãe. A moça foi ouvida na sexta-feira.
5 – Ser ou não Jesus – desde que ficou evidente que a versão inicial do advogado Handro era falsa, todos só concordam numa coisa — e essa coisa não deixa de ser, diante da Justiça, FAVORÁVEL A CADU: ele seria meio maluco. Até o depoimento de “Madrinha Bia” caminha por aí. Passou-se a noticiar a versão de que o rapaz queria que Glauco asseverasse a sua mãe que ele era “Jesus”. Diz Bia ao Fantástico:
“Ele queria que o Glauco afirmasse que ele era o poderoso. Aí eu mesma afirmei que ele era Jesus. Eu falei: ‘não, pra mim você é Jesus’. O Glauco em nenhum momento afirmou”.
6 – Encontro de versões – Atenção para um detalhe que parece sutil, mas que pode se tornar central. Notem que, então, essa história de que o rapaz era Jesus foi uma tentativa da “Madrinha Bia” de aplacar o surto de Cadu — não teria partido dele próprio. Segundo o advogado de Felipe, no entanto, quando seu cliente foi rendido, o outro já se dizia “Jesus”. Não lhes parece que há o risco de estarmos diante de uma espécie, assim, de encontro de versões?
7 – Conveniência – Tenho algumas hipóteses e dúvidas, como todo mundo. De uma coisa, no entanto, EU JÁ NÃO DUVIDO MAIS. Caracterizar Cadu como maluco tornou-se conveniente para todo mundo: 1) para a igreja Céu de Maria; 2) para o acompanhante Felipe; 3) para o próprio assassino.
PATRULHA
E agora falarei um pouco da patrulha. Cada um, reitero, chame de “cristão” o que bem entender. Eu me dou o direito de discordar. Não custa lembrar que o nome da igreja de Glauco, “Céu de Maria”, não é exatamente uma homenagem à mãe do Cristo, à Imaculada. Segundo apurei — e parece ser notório —, é uma referência à “Santa Maria”, nome como é conhecida a maconha para, vá lá, uso ritualístico. Sua igreja pertencia a uma dissidência que passou a incorporar essa erva nas cerimônias: como, em que condições e para quem, bem, isso, confesso, não sei nem me interessa.
Na Internet, há um intenso debate sobre distorções a que o daime original teria sido submetido. Confesso que acho esse debate aborrecido porque fica parecendo uma guerrinha de religiões. O que acho preocupante, aí sim — e se torna um assunto de saúde pública —, é que substâncias psicoativas sejam usadas em cerimônias religiosas, eventualmente atraente a jovens, sem, parece-me, uma abordagem criteriosa.
Comecei a ter crises de pânico em 1986, antes de a doença virar arroz de festa nas igrejas pentecostais eletrônicas — que atribuem a coisa a manifestações do capeta. Curei, ou controlei (estou sem ela há uns 10 anos), a minha doença com antidepressivos. Os vigaristas prometem resolver tudo com o dízimo… À época, a coisa era de diagnóstico difícil; os médicos tinham receio de abraçar essa abordagem. Tive sorte.
A primeira recomendação do médico que passou a cuidar de mim: “Se você fuma maconha, pare; está provado que ela precipita crises de pânico”. Eu não fumava. Mas me surpreendi que algo tido como “inofensivo” (nunca acreditei nisso) pudesse estar associado a uma doença tão terrível. Até hoje, há quem confunda Síndrome do Pânico com medo de avião ou de barata… É um troço devastador.
Não é segredo para ninguém que o daime está atraindo viciados em drogas, que encontrariam nos cultos — e os jornais andaram publicando testemunhos — uma chance de se livrar do vício. Durante um bom tempo, a religião ficou restrita a um círculo de iniciados. Passou pela fase da glamorização, com a adesão de artistas e de descolados (seria a nossa “cientologia do cipó?”), e está começando a se popularizar. Segundo o testemunho de uma fotógrafa, publicado na Folha, administra-se a bebida também a bebês em cerimônias de batismo.
Não vou debater a metafísica do daime e seu impressionante sincretismo. O que acho preocupante nessa história não é o alcance teórico da teologia, mas a ainda ignorância do alcance químico desta particularíssima eucaristia.
E só para encerrar: não estou satanizando pessoas ou religiões. Estou exercendo o meu direito de expor estranhamentos. Acho que eles colaboram para que a morte de Glauco e a de Raoni não terminem sem culpados.