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O Som e a Fúria

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Para dinossauros do rock dos anos 70 e 80, o show não pode acabar

Eles se recusam a aceitar a extinção e seguem fazendo turnês mesmo sem conservar quase nada de suas versões originais

Por Felipe Branco Cruz Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h42 - Publicado em 12 fev 2023, 08h00

Ao sair de uma bem-sucedida turnê, no início dos anos 2000, o Kiss surpreendeu os fãs com o anúncio repentino da aposentadoria da banda. A ideia era rodar o mundo com uma nova e milionária turnê de despedida, a Farewell Tour. Após 142 shows, o giro chegou ao fim, mas o grupo americano não cumpriu a promessa de pendurar as chuteiras (ou melhor, as fantasias): continuou na estrada, ainda que dessa vez sem as presenças do guitarrista Ace Frehley e do baterista Peter Criss. Desde então contando com outros dois músicos ao lado dos dois remanescentes originais, o vocalista Paul Stanley e o baixista Gene Simmons, o Kiss fez nada menos do que outras doze novas turnês mundiais. Até que, em 2019, a banda anunciou mais uma vez que se aposentaria — agora, juraram os roqueiros mascarados, seria para valer. Para garantir que não estavam de brincadeira, a turnê foi chamada de The Final Tour Ever — Kiss End of the Road (A Última Turnê de Todos os Tempos — Kiss Fim da Estrada). Mas o que era para ser o epílogo está durando bem mais que o anunciado: a banda passou pelo Brasil em 2022 e voltará ao país em abril próximo, para outras cinco apresentações.

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O caso do Kiss ilustra uma curiosa característica das bandas de rock clássico dos anos 60 e 70: elas são como dinossauros que se recusam a aceitar a ideia de extinção. Mesmo quando seus integrantes originais já não fazem mais parte dos grupos, seja porque já morreram, se aposentaram ou, com mais de 80 anos, não têm saúde para as extenuantes rotinas dos palcos. Lynyrd Skynyrd, Yes, Foreigner, Creedence e Dire Straits são exemplos de conjuntos que ainda estão na ativa — mas com gradações de “autenticidade” que vão de apenas um ou dois integrantes originais até nenhum deles em cena.

NA ESTRADA - Steve Howe (à esq.), do Yes: apenas um integrante clássico -
NA ESTRADA - Steve Howe (à esq.), do Yes: apenas um integrante clássico – (Will Ireland/Getty Images)

O importante é continuar faturando em cima de marcas consagradas e de um catálogo musical nostálgico, capaz de atrair ainda muita gente. Paul Stanley e Gene Simmons já disseram que, se depender deles, o Kiss jamais morrerá: após a saída dos próprios do palco, o grupo seguirá eternamente em turnê, como em uma franquia. Nesse caso, a ideia é a de que novos músicos assumam os papéis dos fundadores, incluindo as maquiagens.

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Afinal das contas, por que matar a galinha de ovos de ouro? Segundo o site Touring Data, que contabiliza o público e a renda de shows, entre 2019 e 2022 o Kiss faturou 169 milhões de dólares em sua turnê de despedida. Para além da renda amealhada pelos veteranos na estrada, a máquina registradora contabiliza uma venda constante de memorabilia, aumento do engajamento dos fãs nas redes e o incremento nos números de execuções das músicas no streaming.

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O Lynyrd Skynyrd, uma das bandas mais celebradas do rock sulista americano, é exemplar nesse sentido — e remete ao famigerado paradoxo do navio de Teseu. Na mitologia grega, o barco do herói é conservado por 300 anos e, conforme suas peças apodrecem, são substituídas por outras novas, até não restar nenhuma original — imagem que resume à perfeição o destino de bandas como o Lynyrd. Em 1977, um acidente aéreo matou o principal compositor do grupo, Ronnie Van Zant, além dos irmãos Stevie e Cassie Gaines. Conforme o tempo foi passando, outros membros também foram sendo trocados. Na formação atual, o único integrante genuíno é o guitarrista Gary Rossington — que, ainda assim, faz só participações esporádicas nos shows.

SEM FIM - Lynyrd: acidente matou parte da banda em 1977, mas ela ainda resiste -
SEM FIM – Lynyrd: acidente matou parte da banda em 1977, mas ela ainda resiste – (Jeff Robinson/Getty Images)

Eis então o dilema: nesses casos, seria o artista mesmo ou só uma manjada banda-tributo? Em entrevista recente, Rossington decifrou o mistério: “Todos que vão aos shows sabem que o grupo não é o original. Mas eles ainda querem nos ouvir ao vivo”. A mesma coisa acontece com o Foreigner e o Yes — ambos em turnê e com apenas um integrante clássico. Mesmo assim, Mick Jones, fundador e guitarrista do Foreigner, enfrenta vários problemas de saúde e raramente sobe ao palco. No atual Yes, o guitarrista Steve Howe é o único remanescente do período de auge do grupo, embora não faça parte do time de fundadores.

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Algumas bandas criaram uma espécie de antídoto para o caso de a farsa ficar muito evidente. A Dire Straits Legacy é formada por músicos que tocaram no grupo em diferentes ocasiões e gira o mundo com um show em homenagem aos irmãos Knopfler, que criaram a banda. Seria mais ou menos como os Rolling Stones vendendo ingressos por aí sem Mick Jagger e Keith Richards, mas o público acaba engolindo. Caso semelhante ocorreu com o Creedence Clearwater Revival: coadjuvantes da banda original seguiram com o conjunto e ganharam na Justiça o direito de tocar suas clássicas canções, desde que deixassem claro ser uma banda-­tributo e usassem um aposto diferente no nome — que virou Creedence Clear­warter Revisited. Com ou sem seus velhos astros, o show não pode parar.

Publicado em VEJA de 15 de fevereiro de 2023, edição nº 2828

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