Quando arrumei a mala, soquei apenas a mudinha básica de sempre: roupas que passam razoavelmente despercebidas em qualquer década do Século 20. Ao inserir as coordenadas na Máquina do Tempo, digitei somente o código “24-03-1912”, data do primeiro Ponte Preta e Guarani, cinco anos depois batizado “Dérbi Campineiro”. Mas “deu ruim”. De repente me vi numa viagem longa, parecendo interminável, com seguidas, inesperadas e cansativas escalas _ tipo pacotão promocional de empresas de turismo. Não por culpa de algum ‘bug’ no meu bólido mágico, que atravessa as barreiras entre o ontem e o amanhã. Ele cumpriu com louvor a mais distante viagem que já fiz ao passado. O problema foi o rolo que arrumei na Vila Industrial, em Campinas (SP), num campo de várzea lotado de gente pra testemunhar o jogo histórico – quarto mais antigo clássico brasileiro, mas primeiríssimo lugar em mistério. Até 2021, de “quando venho”, ainda quase nada se saberá sobre o certame, sequer o placar, levando historiadores a optar por fichas técnicas (informações da partida) em branco. Parti do futuro _ a poucos dias de mais um encontro dos rivais, o 201º na história _ excitado pela chance de desvendar tantos segredos. Mas, como já disse, minha jornada foi igual a Roteiro de Viagem em Grupo nas férias. Maior furada!
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Meu erro, queridos leitores de 1981 _ “onde” acabei vindo parar e publico esta resenha _, foi achar que, se os torcedores pós anos 40, para quem já escrevi, em geral duvidam ao em apresentar como viajante do futuro, a inocente turma de 1912, no recém-chegado futebol, ia ignorar e rir muito, sem me dar bola. Que nada… Rivalidade é rivalidade… Antes de rolar a bola no campinho com chão de terra e traves feitas de bambus _ juro! Vi com esses olhos que a terra há de comer e onde bambus hão de crescer _, cismei de circular tagarelando fatos do amanhã, como goleadas, rebaixamentos e as estatísticas do Dérbi até 2021. Pra quê? Ao ouvirem que o resultado deste confronto inaugural seria eternamente desconhecido, por falta de registros, e assim não se somaria aos dados de nenhum dos clubes, as torcidas rivais se entreolharam, num momento único de comunhão, e partiram pra cima do pobre sujeito que escreve essas também surradas linhas. Bati em disparada, como um cavalo selvagem ensandecido. Afinal, estávamos ou não prestes a assistir um Dérbi?
Desconfio que a fúria daqueles quadrúpedes que me perseguiam tenha sido a inspiração para os apelidos que os times vão ganhar no porvir: ‘Macaca” (estavam com ela!) e “Bugre” _ termo que os saqueadores portugueses usavam para indígenas e depois alçado ao dicionário como sinônimo de rude ou violento. Já a salvo na Máquina do Tempo, iniciando a fuga, deu pra ouvir as patadas da turba na fuselagem. Latinhas de rapé, garrafas de quinino, sei lá… O certo é que as avarias foram… Cavalares! Retomei a viagem no tempo chacoalhando, e descobri que perdera o controle sobre em que ano ou momento da história parar. Veio o tranco forte, como um coice, que me arremessou ao chão de algum canto do Rio Antigo. Ao avistar o campo de futebol próximo e a movimentação de torcedores, foi barbada: era a Rua Guanabara e tinha chegado a 1905, 22 de outubro, dia do primeiro e mais antigo clássico entre grandes clubes do Brasil, daí o apelido: “Vovô”. O placar eu sabia: Fluminense 6 x 0 Botafogo. Bem, rumo ao jogo, certo? Na-na-ni-na-não… Subitamente, a Máquina do Tempo começou a se agitar, dando pinotes, como um puro-sangue indomável, prestes a fugir dali, num galope só. Com um salto, montei a tempo, e seguimos na estrada. Tô falando sério! Não é trote!
Mesmo sendo dia de dar cavalo, Grupo 11, não sou tão burro pra não entender, já na segunda escala, o que estava acontecendo. Os avanços do plantel campineiro tinham embaralhado os microprocessadores da Máquina, mas a marcha desgovernada ainda reagia a estímulos (ou ao chicote) das ‘tags’ inseridas: “clássico”; “primeiro jogo”; “mais antigo”… Seria uma viagem aleatória pelas efemérides da história dos maiores clássicos no futebol. Descera desta vez em 1909, 18 de julho, primeiro GRE-NAL (segundo confronto mais antigo do país), que ia acabar num 10 x 0 pros gremistas. Chato… Torcedores colorados se aproximaram, mas achei melhor ficar calado, focinheira na boca.
Vejo a Máquina bufando, empinando, e lá vamos nós galopar pelo tempo… Cada vez mais rápido, e com estancadas que me derrubam com mais violência. Menor, só o tempo que tenho, a cada parada, pra voltar à sela, isto é, ao meu lugar na excursão. “Iiiiiiiiirrrrrrrrrriiiiii!” A freada agora me lembra um relinche. Estou sobre um cavalo louco mesmo, penso, ao descobrir que aterrissamos na Inglaterra. Ah, claro! Ao meu redor flanam centenas de torcedores do Sheffield FC e do rival Hallam, o mais antigo clássico entre clubes do mundo, disputado desde 1860. Me agarro na crina do garanhão cibernético e em seguida desço no Recife, ‘Clássico dos Clássicos’, com Náutico e Sport soltando ar pelas narinas, na primeira disputa de forças. Estava em 1909 de novo, uma semana depois daquele GRE-NAL, e sei que será 3 x 1 pro esquadrão alvirrubro. Adiante, ô, Silver! Como parar este campeão das pistas de terra, grama e do tempo? Upa, cavalinho… Ôôôô… Ôôôô… Faço barulhos e emito aqueles beijinhos estalados tentando acalmá-lo _ mas nada acontece e o jeito é tirar meu cavalinho da chuva.
Talvez por alguma ‘nave-égua’ que tenha cruzado o caminho, a Máquina do Tempo reduz a velocidade, trazendo algum alívio, logo interrompido por novo pinote. Chego a Belém do Pará, impossível não reconhecer, mesmo sendo a vila deste começo de século: 10 de junho de 1914, com os pioneiros na enorme paixão por Remo e Payssandu estão por ali, traçando potes e potes de açaí enquanto aguardam a partida que dará início ao clássico com maior número de edições no futebol mundial. Até 2021, de “quando” venho, serão 760 partidas (alguns corpos de vantagem para o segundo colocado, Ceará x Fortaleza, o “Clássico Rei”, que terá então a marca de 593 confrontos). E assim segui, nessa aparente eterna cavalgada sem rédeas, emparelhando com outras efemérides épicas, como os 2 x 0 do Peñarol sobre o Nacional, em 15 de julho de 1900, amistoso uruguaio que lidera _ vencendo já na largada _ este Grande Prêmio da história, levando o troféu de mais antigo clássico das Américas. Pule de 10.
Uma alma equina parece ter mesmo se apossado na Máquina do Tempo. Seguindo o instinto da espécie, que ao se soltar retorna ao ponto de referência, a futurista engenhoca desbravadora dos anais do futebol novamente encosta pra beber água na Inglaterra, país onde nasceu o mais amado dos esportes. E terra da cidade de Epsom, onde, desde o Século XVII, acontece o Derby, corrida de cavalos que batizou clássicos no Brasil, como o Ponte x Guarani _ do qual não gostaria de dar mais informações neste momento _ ou o da capital paulista, entre Palmeiras e Corinthians, rivais desde 6 de maio de 1917, com vitória do então Palestra Itália (3 x 0). No Reino Unido, chegara agora em 1872, 30 de novembro, minutos antes de jogadores de Inglaterra e Escócia iniciarem a correria atrás da bola, realizando o que a Fifa considerará o primeiro clássico entre Seleções. A propósito, deixei 2021 poucas semanas após novo encontro entre os rivais, um 0 x 0, mesmo placar de 149 anos antes. Só cavalo que não anda pra trás.
A boa notícia nas terras da Família Real foi encontrar o desconhecido, enviado por mim mesmo de algum futuro, que garantiu saber consertar a Máquina do Tempo. Acreditei, pois de cavalo dado não se olha os dentes, certo? E ele domou o problema. Ufa! Eu estava de novo no páreo. Foi aí que me veio à cabeça uma maldade que, revelo, será cometida daqui a quase 20 anos, no lançamento do filme “O Sexto Sentido”, cujo roteiro terá um segredo para o público descobrir ao final. De molecagem, pessoas vão passar de carro próximo às imensas filas na porta dos cinemas gritando: “O Bruce Willis tá morto!” Um dia, queridos leitores de 1981, vocês vão entender… Inspirações assim, perversas, me trouxeram até aqui, 4 de agosto, véspera da aguardada final do primeiro turno do Paulistão, reunindo os rivais centenários de Campinas: ‘Bugre’ e ‘Macaca’. A vingança é um Grande Prêmio que se vence pelas beiradas. Cheguei. Correndo por fora.
Aos torcedores do Guarani, envio aqui o ‘spoiler’ pra estragar a festa desde já: amanhã vai dar Ponte, 3 x 2. E Careca será expulso. Ah, já ia esquecendo, o ‘Bugre’ terá anos difíceis no próximo século, sofrendo 9 rebaixamentos em 15 anos e indo parar na Série C do Brasileiro. Agora, puxando as rédeas para o outro lado: alô, galera da Ponte! Em 2012, no jogo de 100 anos do confronto, e no Dérbi número 200, em 2021, dois triunfos do Guarani. E “Campeões Brasileiros”, entrando na Tropa de Elite do futebol nacional, como os rivais foram há três anos, vocês “nunca serão!” _ ao menos até 2021, posso garantir. Deixei o futuro faltando poucos dias pro Dérbi Campineiro nº 201, com ambos disputando a Série B (sinto informar!). E com as estatísticas do clássico registrando 68 vitórias do Guarani, 66 da Ponte e 65 empates. E ainda incríveis e exatos 267 gols pra cada um. Disputa acirrada. Cabeça à cabeça.
FICHAS TÉCNICAS
(Ordem Cronológica)
INGLATERRA 0 x 0 ESCÓCIA
(primeiro clássico entre seleções)
Data: 30 de novembro de 1872
Local: O clube de críquete Hamilton Crescent
Árbitro: William Keay (o jogador inglês Charles Alcock, lesionado, foi o bandeirinha)
Público: Cerca de 4 mil curiosos
Inglaterra: Robert Baker, Ernest Greenhalgh, Reginald de Courtenay Welch, Frederick Chappell, William Maynard, John Brockbank, Charles Clegg, Arnold Kirke-Smith, Cuthbert Ottaway, Charles Chenery e Charles Morice
Escócia: Robert Gardner, William Ker, Joseph Taylor, James Thomson, James Smith, Robert Smith, Robert Leckie, Alexander Rhind, William MacKinnon, James Weir e David Wotherspoon
PONTE PRETA ? X ? GUARANI
(DÉRBI nº 1)
Data: 24 de março de 1912
Local: Campo de Santanna, na Vila Industrial (Campinas)
Árbitro: Desconhecido (teria sido o dono da padaria?)
Público: Muitos, tinha bastante gente
Renda: Era amistoso, também conhecido como ‘pelada’ ou ‘rachão’
Escalações:
Não há como ter certeza, por falta de prova e pelo fato de na época ser comum um jogador disputar o primeiro tempo num time e ir defender adversário na segunda parte do confronto. Posto pra correr, o Comentarista do Futuro não teve tempo de anotar nada. Mas são grandes as probabilidades de terem participado do jogo nome desta lista de um combinado dos clubes de Campinas formado três semanas antes:
Possíveis jogadores em campo: Jinger, Salgado, Benetti, Jacomelli, Camões, Toto, Zeca, Lili, Russo, Miguel e Valter.
Confirmado: Certeza mesmo é que estavam, pela Ponte, Balthazar, Jansen e Nininho, identificados na única foto conhecida do histórico confronto.
Gols: Não se sabe. A Ponte defende que venceu a partida por 1×0, gol de Lopes. Há outra versão que diz ter sido 1x 1. E ainda uma terceira, claro, que fala de triunfo do Guarani. Não há registros que comprovem nenhuma delas.
PONTE PRETA 3 X 2 GUARANI
(DÉRBI nº 145)
Data: 5 de agosto de 1981
Estádio: Moisés Lucarelli (Campinas)
Juiz: José de Assis Aragão (SP)
Público: 22.167 (21.948 pagantes e 219 menores)
Renda: Cr$ 4.247.900,00
Ponte Preta: Carlos; Toninho Oliveira, Juninho, Nenê e Odirlei; Zé Mário, Humberto (Marco Aurélio) e Dicá; Osvaldo, Chicão (Jorge Campos) e Serginho. Técnico: Jair Picerni
Guarani: Birigüi; Chiquinho, Mauro, Edson e Almeida; Jorge Luís, Éderson (Tadeu) e Jorge Mendonça; Lúcio, Careca e Ângelo. Técnico: José Duarte
Gols: Osvaldo, aos 37′, e Ângelo, aos 45′ do 1º tempo; Serginho, aos 4′, Jorge Mendonça, aos 8′, e Odirlei, aos 37′ do 2º tempo
Cartão vermelho: Careca, aos 45′ do 2º tempo
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