Já embarquei na máquina do tempo pensando que meu destino era um ano marcado por duas mãos muito estranhas. A primeira delas, revelo a vocês, queridos leitores de 1982, terá um dedão cumprido com protuberância luminosa na extremidade, imagem clássica de um filme que em dezembro chega ao Brasil, “E.T., o Extraterrestre” – aposto minhas falangetas que todos que me leem um dia vão assistir. A outra esteve em cartaz ontem, neste 1 x 0 que deu ao Flamengo o título do Campeonato Brasileiro, no terceiro e decisivo jogo contra o Grêmio. Deixei o futuro, 2021, às vésperas de mais um confronto entre os clubes, num mata-mata pela Copa do Brasil. Curiosamente, acreditem, este mesmo Renato Gaúcho que ontem infernizava no ataque gremista será então o treinador rubro-negro. Mais: estará enfrentando pela primeira vez o Grêmio após cinco anos no comando do time gaúcho. São muitas as histórias entre os rivais, mas nenhuma tão esquisita como este lance de ontem. Vi e revi dezenas de vezes os VTs sem conseguir saber quem afinal deu aquele tapa na bola, quando ela já cruzava a linha do gol, empatando a final. Andrade? Raul? Só havia um jeito de descobrir: entrar no gramado e achar um lugarzinho atrás do gol. Mas para isso precisaria de alguma ajuda. Ou seja: mais uma “mãozinha”.
“Hum, mais se um dia eu chegar… Muito estranho”, soava no rádio do táxi, a caminho do estádio, o grande hit do momento, na voz do Dalto. O senhor Oscar Scolfaro, árbitro da finalíssima, certamente se sentia assim ao chegar ao vestiário do Olímpico, principalmente ao perceber que o botão de seu calção preto não fechava na cintura. Sim, o juiz paulista não é E.T. mas ontem também exibia suas protuberâncias. Corria pelo campo e acompanhava as jogadas com a velocidade de um astronauta dando saltitos na Lua. Por isso não viu o pênalti claro no ponta-esquerda Tonho, isso ainda no primeiro tempo. Mas justiça seja feita: no lance da suposta mão na bola, nem o nosso supercampeão Nelson Piquet (ele ainda vai ganhar o título mais duas vezes, aguardem!) seria capaz de chegar a tempo para dirimir as dúvidas. Foi tudo muito rápido. Só vendo ali de pertinho, colado na rede, por trás, como planejei. Mas como conseguir acesso ao campo? Teria que achar alguém que tivesse uma credencial de imprensa para deixar aqui, ó, na minha mão – a quarta a figurar como protagonista nesta resenha.
O único gaúcho que me veio à cabeça foi o grande jornalista esportivo Ruy Carlos Ostermann, o “Professor”, que sempre acompanhei e acompanharei nos próximos 39 anos. Malandro, parti rumo ao passado munido de seus contatos pessoais em 1982. No futuro, revelo a vocês, todos teremos um número de telefone pessoal mais importante que nosso registro de identidade e pelo qual seremos encontrados a qualquer momento e em qualquer lugar. Passaremos a ser reconhecidos e identificados menos pelos nossos CPFs e mais por esse conjunto de 8 ou 9 algarismos, que chamaremos de “telefone celular”. Esse avanço tecnológico, porém, virá acompanhado de uma espécie de fobia em fazer ou receber ligações. Anotem aí: as pessoas se comunicação por um troço chamado “WhatsApp”, um serviço de mensagens, e será comum e considerado de bom tom que, antes de telefonar para qualquer pessoa, tenhamos que perguntar: “posso te ligar?” Vai entender… O grande Professor Ostermann vai ter o seu mas por enquanto só possui o velho e bom telefone fixo, aquele rechonchudo, cinza claro, de discar… Ôôô, saudade… Liguei! Com o velho e bom dedão indicador – sem “luzinha” na extremidade. Dedo de macho, tchê!
Marcado aquele chimarrão horas antes do jogo, não foi difícil convencer o agora amigo do peito “Ruy” das minhas boas intenções e, principalmente, de que eu viera mesmo de 2021. Trouxe no bolso algumas informações pessoais que só alguém chegado do futuro poderia ter. E foi assim que, quando o Scolfaro apitou o início da final, já ofegante, lá estava eu, sentadinho atrás do gol à esquerda das cabines de rádio e TV – de onde, inclusive, o Professor, ainda perplexo, me deu um simpático tchauzinho… Com a mão direita. Olha mais uma aí!!! Até no elenco de figuração…
Começa a final. Olho para o campo e – alerta de ‘spoiler’! – observo que cinco dos jogadores correndo atrás da bola estarão defendendo o Brasil daqui a dois meses, na Copa da Espanha: Batista, Paulo Isidoro, Leandro, Júnior e Zico. De um lado o campeão brasileiro de 1980, da Libertadores e do Mundial de Clubes de 1981, o Flamengo, contra o campeão nacional do ano passado, Grêmio, que, entrego aqui, alcançará o título continental e o triunfo planetário muito em breve – também conhecido como “ano que vem”. Jogão! Logo no início, aos 10’, veio o gol do Nunes, o “artilheiro das decisões” (foi dele o gol do Brasileiro de 80, dois na final do Mundial ano passado…). O centroavante teve mais duas boas chances, uma de cara com o Leão. Mas o jogo era lá-e-cá, com o Grêmio ameaçando em chute de De León, com Renato sendo bloqueado na pequena área e Tonho quase marcando duas vezes, numa delas, aos 35’, escandalosamente derrubado quando ia chutar ao gol. Penalti! Eu, que estava lá do outro lado, guardando meu lugar, não tive dúvidas. Já o digníssimo juiz Oscar Scolfaro, quase tão longe como esse que vos fala, limitou-se a mandar o jogo prosseguir, fazendo aquele gesto típico do “vambora! Segue, segue!”, assim ó… E pondo assim mais uma mão nessa história.
Intervalo. Tento dar um toque num fotógrafo ao meu lado: “Ei, presta atenção que vai ter um lance importante aos 10 minutos… Não vai trocar o filme da máquina nessa hora, pô…” Ele se limita a me lançar um “olhar Dalto” – muito estranho. Atrás do gol, querendo que o tempo passe logo, divago: não é apenas coincidência o fato de os dois lances, o gol de Nunes e a mão na bola, ocorrerem aos 10 minutos, um em cada etapa. Dez são os dedos das mãos – e rio comigo mesmo. “Prrrrriiiiiiiiiiiiiiii!” – mesmo que fraco, soa o apito do Scolfaro. Em mim, o sobrepeso é de ansiedade. Chega o momento do escanteio, olho pro relógio do placar e ele marca 10 minutos, me ajeito o mais próximo possível para testemunhar o lance… “Sai da frente, Maluco!”… Súbito, o tal fotógrafo, preocupado em não perder a jogada, me deu um safanão daqueles, me atirando ao chão justo no momento do bafafá na área… Foi uma mãozada só. A sétima e derradeira nesse depoimento. Ainda teve, confesso, uma oitava mão, fechada, na fuça do lambe-lambe, mas dessa prefiro não dar detalhes.
Por conta da confusão, vieram uns fiscais da partida, que me retiraram do campo. E mais não vi. Sei, por ter lido no futuro, que foi grande a pressão gremista dali ao apito final. Mas o placar ficou nesse 1×0, dando o Bi do Brasileiro ao Flamengo e impedindo o do Grêmio. Para erguer um novo Brasileiro, aliás, sinto informar à torcida gremista que será uma espera de 14 anos. E desse não passará. Mas trago também boas novas do porvir: títulos na Copa do Brasil serão cinco! Um deles em final contra o próprio Flamengo, em 1997 – até 2021, de “quando” venho, única vez em que os dois times voltarão a se encontrar numa final. Nas estatísticas, somarão 98 jogos, com vantagem do Grêmio (34 vitórias), 33 empates e 31 triunfos rubro-negros. No Brasileirão, já terão sido 70 jogos, com 29 vitórias do Grêmio, 21 do Flamengo e 20 empates. Ou seja, o Grêmio à frente nos números gerais do confronto. E poderia ter uma vitória a mais, esclarecido fosse o lance de ontem, sobre o qual daqui a alguns anos dirá o meia Andrade, acusado de ter dado o “smash” na pelota: “Eu pensei em retirar a bola com mão” […] “pra te dizer a verdade eu não sei o que aconteceu, eu não sei se eu levei a mão na bola ou se eu fui com a bola realmente com a cabeça”. E aí? Faltou pôr a mão na consciência?
A história talvez também seria outra não fossem as lambanças do Senhor Scolfaro, sorteado pela CBF após as duas primeiras partidas finais (1×1 no Maracanã; 0x0 no Olímpico) terem o apito de José Roberto Wright. A torcida do Grêmio sempre vai lembrar e chiar que o juiz paulista já tinha ajudado o Flamengo nas oitavas de final, quando anulou um gol do Sport Recife que eliminaria o time da Gávea. Mesmo com tudo isso – e a sensação de que, seja quem for o autor da cortada de vôlei, a bola parece já ter entrado – me abstenho de incluir no elenco desta resenha mais um protagonista de cinco dedos, como garantem os gremistas. Em 2021 eles ainda estarão seguros de que, nessa final de 1982, o juizão ó…. “Meteu a mão”!
FICHA TÉCNICA
Grêmio 0 x 1 Flamengo
Data: 25 de abril de 1982
Estádio: Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu
Local: São Paulo
Árbitro: Oscar Scolfaro
Público: 62.256 pagantes
Renda: Cr$ 29.579.000,00
Grêmio: Leão; Paulo Roberto, Newmar, De León e Paulo César; Batista, Paulo Isidoro e Vilson Tadei (Odair); Renato Gaúcho, Baltazar (Paulinho) e Tonho (Odair).
Técnico: Ênio Andrade
Flamengo: Raul; Leandro, (Antunes), Marinho, Figueiredo e Júnior; Andrade, Adílio e Zico; Tita, Nunes (Vítor) e Lico.
Técnico: Paulo César Carpeggiani
Gols: Nunes (FLA) aos 10′
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