Sob o império do pânico (por Gaudêncio Torquato)
Instala-se uma cadeia de eventos e situações inesperadas
A vida é um eterno recomeço. Fosse escolher uma lenda semelhante à sua vida, provavelmente o brasileiro escolheria a de Sísifo, o solerte e audacioso rei de Corinto que se livrou da morte por duas vezes, sempre blefando. Não cumpria a palavra, até que Tânatos veio buscá-lo em definitivo. Como castigo, foi condenado a rolar montanha acima um grande bloco de pedra. Quase chegando ao cume, o bloco desaba montanha abaixo. A maldição de Sísifo é recomeçar, eternamente.
O povo se sente no estado de eterno recomeço. Padece das previsíveis tragédias provocadas pelas chuvas; angustia-se nas filas do INSS; vê o dinheiro sumir com a economia em recuo; e passa a temer agora a foice da morte escondida na forma de coronavírus, que ataca ricos e pobres. O mundo está em pânico.
Instala-se uma cadeia de eventos e situações inesperadas. Aulas suspensas, diminuição de aglomerados e mobilizações de ruas e ambientes fechados, apesar de grupos com a síndrome do touro (arremetem com a cabeça e pensam com coração) não se incomodarem com isso; isolamento em casa ou em hospitais, semanas perdidas de trabalho; paralisação parcial de setores vitais da produção e dos serviços, perdas monumentais para a economia; débâcle das bolsas mundiais. Só a brasileira já perdeu cerca de um trilhão de reais. A pandemia forma ondas de medo e de fake news. As estruturas de saúde não suportarão as demandas.
Ao fundo, paisagens de destruição, pequenas e grandes catástrofes que se repetem, entre inundações e desabamentos, escândalos envolvendo governantes, políticos e empresários; ameaça de novos impostos; tensões acirradas entre os três Poderes; e, claro, politicagem acentuada em ano eleitoral.
Os efeitos são catastróficos, contaminando a alma nacional e desmanchando o fervor pátrio, aquela chama que Alexis de Tocqueville constatou em seu clássico A Democracia na América: “existe um amor à pátria que tem a sua fonte principal naquele sentimento irrefletido, desinteressado e indefinível que liga o coração do homem aos lugares onde nasceu. Confunde-se esse amor instintivo com o gosto pelos costumes antigos, com o respeito aos mais velhos e a lembrança do passado; aqueles que o experimentam estimam o seu país com o amor que se tem à casa paterna”.
Que amor à Pátria pode existir em espíritos tomados pelo pavor, pela violência, por balas perdidas e marginalidade comandada de dentro das prisões? Que espírito público pode vingar quando grupos teimam em dividir o país em duas bandas, bradando contra a liberdade de imprensa?
Brasileiros motivados a realizar o sonho de uma vida melhor nos EUA voltam algemados. Amargos, se perguntam: o que fazer? Começar tudo outra vez?
Onde e quando chegaremos à estabilidade e por que essa economia não melhora? Fato: as margens embolsam seu dinheirinho no início de cada mês e ao final contam migalhas. E com esta crise nas bolsas, nem a ilusão de ganho um pouco melhor atrai o poupador.
A economia dá o tom. Consequentemente, sobram poucos recursos para serviços sociais. O processo de reformas nunca termina. Mudanças políticas? Quem sabe? Talvez mais um levante em outubro próximo, parecido com o de 2018.
Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político