Editorial de O Estado de S. Paulo (10/9/2020)
O Brasil continua refém de uma disputa retórica entre o ruim e o pior, que nada tem a ver com a construção de um país democrático e moderno. O presidente Jair Bolsonaro e seu antípoda, o petista Lula da Silva, aproveitaram o Dia da Independência para terçar as conhecidas armas do autoritarismo e do atraso, reiterando a miséria ideológica produzida pelo lulopetismo e pelo bolsonarismo.
“No momento em que celebramos essa data tão especial, reitero, como presidente da República, meu amor à Pátria e meu compromisso com a Constituição e com a preservação da soberania, democracia e liberdade”, discursou Bolsonaro em rede de rádio e TV. Ora, o respeito à Constituição e à democracia é obrigação precípua de todas as autoridades do País, aliás de todo e qualquer brasileiro, e não deveria ser necessário o presidente da República vir a público para confirmar sua disposição de cumpri-la. No caso de Bolsonaro, contudo, é mais que necessário, pois seu histórico de ataques às instituições republicanas, de apoio a movimentos golpistas e de agressão sistemática ao decoro indica profundo desrespeito à Constituição e à democracia.
Assim, o anunciado compromisso de Bolsonaro com a democracia e a Constituição foi bem recebido em parte do meio político – seria mais uma prova de sua disposição de abandonar a truculência que lhe é característica. Mas, como tudo no bolsonarismo, um movimento de natureza intrinsecamente autoritária, as palavras “democracia” e “liberdade” ganham significado bastante diverso daquele consagrado no léxico democrático.
No discurso, Bolsonaro disse que “o sangue dos brasileiros sempre foi derramado por liberdade”. Citou, como exemplos desse heroísmo, a Guerra do Paraguai, a ação da FEB na 2.ª Guerra e, pasme o leitor, o golpe militar de 1964. Ou seja, o presidente equiparou a mobilização militar do País contra inimigos externos à instalação de um regime de força no Brasil para combater inimigos internos – a “sombra do comunismo”, em suas palavras. Isso é o bolsonarismo em seu estado puro: a “liberdade” e a “democracia” que o presidente diz defender são restritas aos brasileiros que andam na linha – os demais, como Bolsonaro mesmo já disse em outros tempos, deveriam ser “fuzilados”.
Enquanto isso, o chefão petista Lula da Silva gravou um pronunciamento em que tratou de relembrar aos brasileiros por que razão o PT foi varrido do poder. A título de denunciar o descaso de Bolsonaro a respeito da pandemia, o ex-presidente recitou todo o abecedário do subdesenvolvimentismo militante. Criticou, por exemplo, a determinação de “pagar juros ao sistema financeiro” com o lucro cambial do Banco Central, dizendo que esses recursos “poderiam estar sendo usados para salvar vidas” na pandemia. Essa afirmação, em si falsa, apenas reitera a rançosa hostilidade esquerdista aos investidores que financiam o governo. Na mesma toada, criticou o teto de gastos, “que deixa o Estado brasileiro de joelhos diante do capital financeiro nacional e internacional”.
Como se fosse líder de chapa estudantil, Lula também atacou o acordo para o uso norte-americano da Base de Alcântara, visto pelo petista como “submissão do Brasil aos interesses militares de Washington”.
Além disso, Lula atacou o “furor privatista” de Bolsonaro, algo que nem os próprios funcionários do governo estão vendo – alguns inclusive pediram demissão recentemente, frustrados com a lentidão do prometido processo de venda de estatais.
Por fim, acusou uma aliança das “forças conservadoras do Brasil” com “interesses de outras potências” para sabotar “os avanços que fizemos”. Até sua prisão Lula atribuiu a uma “criminosa colaboração secreta de organismos de inteligência norte-americanos”.
Enquanto estiver cativo do duelo anacrônico entre lulopetismo e bolsonarismo, repleto de inimigos ocultos, conspirações e imposturas, o Brasil terá enorme dificuldade de identificar seus reais problemas e de arregimentar forças para enfrentá-los. O futuro do País depende da superação, o quanto antes, desse ruinoso embate.