Mexeu com os nervos de muita gente no país – por paixões pessoais, políticas e ideológicas – a derrapagem além da curva do presidente Jair Bolsonaro, ao dirigir em velocidade máxima o caminhão – baú com a carga pesada de um dos temas mais delicados e explosivos no País rachado ao meio pelo velho conflito “esquerda” x “direita”: a questão dos desaparecidos do regime militar bateu de frente com um oponente de peso e incômodo ao governo, não raro também de pavio curto. O atual presidente da Ordem dos Advogados Brasil, Felipe Santa Cruz, posto diante da afirmação do ocupante do Palácio do Planalto, de que sabe e pode revelar, “se ele quiser”, como o seu pai – Fernando Santa Cruz, militante estudantil da Ação Popular Marxista Leninista (APML) – desapareceu.
Praticamente impossível imaginar um motivo de guerra maior, entre a direita – à qual Bolsonaro agradece sua eleição e em nome de cujo pensamento afirma exercer seu mandato – e esquerda, a cujas fileiras o presidente da OAB dá sinais claros de pertencer, ao eleger cerrados ataques ao governo como uma das bandeiras de sua gestão. Chamou até de “chefe de quadrilha”, o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, ex-juiz condutor da Lava Jato, maior ação de combate à corrupção na história do país.
Este embate da semana, além disso, me conduziu a memória ao tempo de grandes lutas acadêmicas e no jornalismo para mim. Na vida estudantil e na profissão nas redações que percorri – A Tarde, Jornal do Brasil, VEJA – não conheci Fernando Santa Cruz. Quanto a Felipe Santa Cruz só recentemente ouvi falar dele, em razão de sua controvertida atuação à frente da entidade representativa dos advogados, na qual não parece estabelecer diferença entre o governo democraticamente eleito de Bolsonaro – quase 60 milhões de votos – com os militares do regime implantado em 1964, no golpe que depôs o governo legítimo de João Goulart.
Conheci e fui contemporâneo de faculdade do outro pernambucano, Eduardo Collier, citado “en passant” pelo presidente, como integrante de facção de “sanguinários terroristas” que desapareceu com Santa Cruz, no Rio de Janeiro, e que Bolsonaro diz agora que foi morto em “justiçamento” por seus companheiros de AP. Com o perfil do colega desaparecido, Collier, “Cristão” ou “Burguês” como era chamado em Salvador, nos Anos 60, as palavras do mandatário não batem.
Na faculdade de Direito da UFBA, nas assembléias e passeatas, em Salvador, Collier era chamado de “Cristão”, por ser filiado a Ação Popular, grupo de esquerda, de origem católica. Nascido de tradicional família pernambucana, vestido em folgadas calças e camisas de puro linho , o moço grandalhão, afável, de fina estampa era para mim uma simpática contradição ambulante. Morou um tempo na Residência Universitária-2, colada à Igreja da Vitória, cujas missas freqüentava. Conseguiu a vaga graças ao apoio do meu amigo (depois saudoso compadre) Pedro Milton de Brito, um dos mais brilhantes e admirados alunos de Direito. Depois presidiu por duas vezes a OAB Bahia e foi conselheiro federal da OABl dos mai s destacados.
Um dia, Eduardo Collier sumiu, para nunca mais. Agora, com o caso Fernando Santa Cruz, seu nome volta à baila no meio deste conflito ideológico feroz. E da busca da verdade, enquanto os dois lados parecem mais interessados em obscurecer do que lançar luz sobre os fatos. Infelizmente.
Vitor Hugo Soares é jornalista, editor do site blog Bahia em Pauta. E-mail: vitors.h.@uol.com.br