Afinal, o que querem os iraquianos?
Quem se candidatar a responder, primeiro tem que passar quarenta dias atravessando um deserto de complicações.
A última delas foi uma cena clássica: barbudos atacando a embaixada americana, gritando morte aos Estados Unidos, jogando sapatos numa efígie de Donald Trump.
Todo mundo já viu isso antes. Mas as peculiaridades iraquianas são únicas.
A mais flagrante: os barbudos irados obedeciam a comandos do Irã, de quem recebem dinheiro, orientação religiosa e ideológica, armas e ordens.
São militantes de diversos grupos armados xiitas unidos sob a bandeira das Forças de Mobilização Popular.
No caso do show na embaixada, que chegou muito perto de escapar ao controle – ou talvez tenha sido criteriosamente dosado para parecer assim -, o detonador foi uma chuva de mísseis disparados por aviões e drones americanos contra uma base de uma dessas milícias, chamada Kataeb Hezbolá, ou Batalhões do Partido de Alá.
Não é nenhuma coincidência que tenham o mesmo nome de uma organização muito mais poderosa e conhecida, o Hezbollah do Líbano, e a mesma ligação umbilical com o Irã.
O bombardeio, com 25 militantes mortos, a maioria quando dormia num alojamento, foi uma retaliação por um ataque dos hezbolás a outra instalação militar, ocupada por soldados e terceirizados (ex-militares também conhecidos como mercenários) americanos e iraquianos.
O detalhe que deixa toda essa combinação mais louca ainda: todos tinham um inimigo em comum, o Estado Islâmico, e cooperavam entre si para combatê-lo.
De certa maneira, o sucesso na aniquilação da maioria dos ultra-radicais sunitas liberou os adversários naturais para retomar suas rivalidades tradicionais.
Foram os bombardeios americanos, e a orientação de forças especiais em terra, que abriu caminho, com destruição previsível, aos soldados regulares e milicianos xiitas para entrar na cidades onde o ISIS tinha seus bastiões. Os iranianos também ajudaram bastante.
Mas não, de forma alguma, que as rivalidades tenham sido de todo abandonadas. Estados Unidos e Irã, por exemplo, continuaram se confrontando, em especial depois que Trump apertou as sanções econômicas contra o programa nuclear iraniano.
Mais elementos de dar nó na cabeça? Existem e não são poucos.
O acontecimento mais atordoante no Iraque atualmente são os protestos de xiitas de várias esferas sociais, mas especialmente de áreas mais pobres, contra o governo que é, justamente, dominado por xiitas.
Tem mais. Manifestantes xiitas se revoltaram contra a enorme influência do Irã. No fim de novembro, tocaram fogo no consulado do Irã em Najaf. Atualmente, promovem um boicote contra produtos importados do Irã – praticamente tudo.
E tem mais ainda. Os dois líderes xiitas mais importantes do país, tradicionais aliados e protegidos dos aiatolás persas, apoiaram os protestos contra o Irã.
O grão-aiatolá Ali Sistani, quase nonagenário, que passou a vida entre o Irã, onde nasceu, e o Iraque, manifestou apoio de forma indireta, como é de seu estilo.
Moqtada Al-Sadr, também influentíssimo, chegou a participar em pessoa dos protestos. O estranho movimento de xiitas contra xiitas mostra duas coisas.
Primeiro, nada é tão simples quanto parece, principalmente no Oriente Médio.
Segundo, a identidade religiosa não basta para superar a rivalidade étnica. Os xiitas iranianos são persas e nem sempre conseguem esconder o desprezo pelos árabes, mesmo quando são seus “irmãos” do mesmo ramo minoritário da religião muçulmana.
A forma descarada como montam e desmontam governos no Iraque, sem que nenhum deles tenha a menor preocupação em sequer disfarçar a corrupção em escala babilônica muito menos em prover qualquer tipo de melhoria nos catastróficos serviços públicos, alimentou os ressentimentos.
Nada surpreendentemente, o governo de maioria xiita desceu a mão sem nenhuma sutileza e já são cerca de 500 os mortos na atual onda de protestos.
Quando manifestantes tentaram entrar na Zona Verde, a área fortificada onde ficam os ministérios e outras instituições governamentais, foram recebidos a bala.
E como os simpatizantes e até líderes de milícias alinhadas com o Irã entraram sem problemas na mesma Zona Verde para cercar a embaixada americana e depredar algumas de suas instalações?
É claro que não foi por acaso.
Note-se que todos os mencionados até agora são sistemicamente antiamericanos. Inclusive o governo que precisa engolir os reforços mandados pelos Estados Unidos para combater o Estado Islâmico e, agora, tentar contrabalançar as armações do Irã para sobreviver ao cerco montado por Trump.
Note-se, também, que todos os governantes envolvidos estão em situação instável, quando não precária, em matéria de política interna.
No Irã, pipocam protestos sem precedentes nas últimas décadas contra o regime dos aiatolás.
E não são só por causa da situação econômica periclitante agravada pelas sanções americanas.
Existe uma corrente fortíssima de ódio ao regime. Quando iranianos gritam “morte ao ditador”, referindo-se a seu próprio aiatolá chefe, Ali Khamenei, ou “morte à Palestina”, alguma coisa muito séria está acontecendo.
A inesperada explosão de protestos no Iraque também foi um baque. Só para lembrar: o alinhamento dos xiitas iraquianos, principalmente na região sul do país, era tão grande que, na época de Saddam Hussein, muitos apoiavam declarada ou secretamente o Irã, inclusive em situações de guerra.
O próprio governo iraquiano também está nas cordas. O primeiro-ministro, Adel Abdul Mahdi, renunciou em novembro, mas continua interinamente.
Ele chegou ao governo pelas mãos do Irã e vai sair dele em consequência desse alinhamento. Só não dá para dizer quando.
Será que insuflar o mais fácil dos ódios, contra os americanos, facilitando a rave na embaixada, poderia fazer parte de um plano maligno para garantir a própria sobrevivência?
Nada, nada mesmo, é impossível no Iraque, o pântano de rivalidades intransponíveis sectárias e étnicas que serviu como a mais clássica das comprovantes da lei de consequências indesejadas.
Ao invadir o país e derrubar Saddam Hussein, na certeza de que era uma ameaça direta aos Estados Unidos e serviria como exemplo brilhante a todo o Oriente Médio de país democratizado e governado em benefício da população.
George Bush filho criou vários monstros. O mais desestabilizador deles foi o próprio Irã.
Livre de seu vizinho mais perigoso por cortesia involuntária dos americanos, o país expandiu seus interesses permanentes: criar um eixo xiita com o Libano e o Iraque, onde a religião, controlada e humilhada por Saddam Hussein, tornou-se dominante.
E, ao mesmo tempo, formar frentes de resistência aos americanos. Muitos dos aliados de ocasião dos Estados Unidos no combate ao Estado Islâmico estavam matando americanos tempos antes.
O próprio sucesso surpreendente, no início, do ISIS deve muito a apoio de iraquianos sunitas que, de dominadores, se tornaram subjugados com a ascensão xiita propiciada pela queda de Saddam. Os terríveis desdobramentos da guerra civil – e internacional – na Síria também foram alimentados pelas rivalidades religiosas.
O ódio aos americanos é permanente e nenhum xiita cogita sequer admitir que deve o fim de Saddam, e portanto sua “libertação”. A invasão aconteceu em 2003. A maioria dos jovens iraquianos, hoje, nas ruas, não tem experiência vivencial da época de Saddam. Mas sabe que o país está uma porcaria, maior ainda que no tempo do ditador.
Malhar Donald Trump como o vilão dos vilões é um dos truques mais óbvios do planeta.
O próprio Trump é o outro governante em situação precária.
Está sob impeachment e teve que engolir, por falta de opção, o oposto do que queria fazer: aumentar o número de tropas no Iraque para responder às múltiplas provocações iranianas, como ataques a navios e instalações petrolíferas.
Muitos dos múltiplos inimigos de Trump dentro dos Estados Unidos mal disfarçaram a esperança de que houvesse em Bagdá uma situação tipo Benghazi, o dramático ataque na Líbia que matou um embaixador americano.
Mesmo sem um embaixador assassinado, uma embaixada em ruínas, tomada por islamistas, seria um desastre de proporções catastróficas para Trump – e uma revanche pelas críticas a Barack Obama pelo caso na Líbia.
Título da reportagem do New York Times sobre o ataque contra a embaixada em Bagdá: “Por que os Estados Unidos se tornaram alvo da fúria dos iraquianos”.
Tradução: a culpa é de Trump.
Minar o presidente americano e aguentar firme, apostando que não seja reeleito, é a estratégia do regime iraniano, permeada por provocações táticas para assustar todo mundo com a hipótese de um bloqueio ao livre trânsito de petróleo pelo gargalo do Golfo Pérsico.
Num ano eleitoral, iniciado já sob o extremo stress do impeachment, “aquele sujeito”, como o chamou provocativamente Ali Khamenei, talvez realmente não esteja em condições de “fazer coisa nenhuma” contra o Irã, em represália pelo ataque contra a embaixada em Bagdá.
Trump, de fato, já recuou no último minuto de um ataque punitivo contra o Irã, por ter sabotado instalações petrolíferas na Arábia Saudita.
Ou talvez não seja uma boa ideia pressionar demais “aquele sujeito”.
Helicópteros Apache dos fuzileiros navais, despachados na correria para proteger a embaixada americana, voaram no céu de Bagdá na passagem do ano novo.
Sinalizadores iluminaram a noite da cidade, lembrando cenas do passado nada distante.
Nenhum dos elementos envolvidos quer a guerra aberta – motivo pelo qual não aconteceu e, Alá ajudando, não deve acontecer.
Mas já pensaram o que aconteceria se militantes xiitas iraquianos, com a bandeira verde e amarela do Hezbolá, tivessem incinerado vivo um embaixador americano na Zona Verde de Bagdá, em ano de campanha presidencial e sendo o candidato mais conhecido “aquele maluco”?