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Por Vilma Gryzinski
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Por que rei Charles tem que usar o título, surrupiado, de Defensor da Fé?

A religião única criada por Henrique VIII, o decapitador de esposas, deixou como herança a posição do rei como líder máximo da Igreja Anglicana

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 19 abr 2023, 10h00 - Publicado em 14 abr 2023, 06h31

Uma mistura de rituais que parecem saídos de Guerra dos Tronos, obscuras tradições criadas ao longo de mais de mil anos e uma boa dose de show business, a entronização de um novo rei da Inglaterra — tecnicamente, do Reino Unido — é uma verdadeira “comédia da coroação”, segundo Guilherme de Orange.

Como bom calvinista vindo da Holanda, Guilherme, que se tornou rei da Inglaterra em 1650 e via um tortuoso labirinto dinástico, ficou impressionado com os ritos religiosos extremamente parecidos com os de seus maiores inimigos, os monarcas católicos.

Com toda razão: a religião anglicana, que torna o rei Governador Supremo da igreja, conservou praticamente tudo do catolicismo, excetuando-se o papa, as ordens religiosas e o celibato clerical.

É ela um dos elementos que tornam a história da Inglaterra tão única e seu fundador, Henrique VIII, um rei sem paralelos, com seis esposas sucessivas – das quais duas, Ana Bolena e Catherine Howard, decapitadas — que não geraram o almejado herdeiro, e o topete, na época inconcebível, de romper com Roma e criar sua própria Igreja.

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Henrique VIII também criou um problema para Charles, o rei que vai ser coroado no próximo 6 de maio aos 74 anos, o mais velho monarca em um milênio de história, produto da longevidade e da fidelidade de sua mãe, Elizabeth II, ao juramento que fez quando se tornou rainha. 

Politicamente correto e ansioso para não parecer muito alienado dos tempos atuais, além de consciente de que nem de longe desfruta da reverência universal a sua mãe, Charles está comandando uma cerimônia com algo de modernizado, incluindo artistas populares e representantes das minorias étnicas.

O problema é que, com a coroa, ele se torna a figura mais importante da hierarquia religiosa anglicana e ganha o título de Defensor da Fé, Fidei Defensor em latim. Charles já disse, pouco depois da morte da mãe, que quer ser um defensor de todas as fés, incluindo as das minorias — muçulmanos, hinduístas, judeus, sikhs e outros do mosaico britânico, entre os quais ”os que não são crentes”. Quer agradar a todo mundo, claro.

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Mas a tradição exige que ele use o título certo, na verdade surrupiado por Henrique VIII. Antes de romper com Roma por exigir a anulação do casamento com a primeira esposa, a princesa espanhola Catarina de Aragão, ele havia recebido a designação altamente honrosa do papa Leão X depois de escrever um panfleto contra as revolucionárias teses de Martinho Lutero. Tornou-se o único rei da cristandade a ter a honraria — ao rei da França, era reservado o título de Cristianíssimo.

Quando queimou as pontes com a Igreja Católica, Henrique VIII teve o título cassado pelo papa. Nenhum problema para um homem que já tinha ido tão longe: articulou para que o Parlamento votasse por sua restituição, em 1544. Tornou-se o defensor de uma fé, na época, herética. Desde então, os reis e rainhas que lhe sucederam ostentam o título subtraído.

Ironicamente, Charles enfrenta, é claro que em dimensões menores, o mesmo dilema da Igreja Católica com a qual seu antecessor do século XVI rompeu: modernizar as estruturas sem perder o apelo da tradição.

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Por isso, a cerimônia soleníssima foi encurtada e o público diminuído. Motivo de um berreiro tão grande entre os parlamentares que foi instituída meio às pressas uma área externa, isolada, para assistirem à chegada da carruagem de 260 anos na qual Charles e Camilla desembarcarão na frente de Westminster, a maravilhosa igreja gótica no centro de Londres e da história nacional.

Quando a mãe de Charles foi coroada, em 1953, foi montada dentro da abadia uma estrutura especial, com praticáveis atapetados, para acomodar os 8 251 convidados, na maioria membros da aristocracia — duques, condes e barões e respectivas esposas, todos em trajes tradicionais, coroa e manto de veludo com arminho. As roupas transmitidas através de gerações eram tão velhas que um par do reino viu seu traje simplesmente se desmanchar no meio da cerimônia. 

Não havia convidados estrangeiros, fora alguns dos países ainda sob a égide do império, porque a coroação e seu momento mais solene, o da unção com óleos perfumados, ainda era vista como um ritual entre o monarca e Deus. 

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Agora, entre os pouco mais de 2 000 convidados, estão todos os monarcas da Europa e do Oriente Médio, com os quais Charles tem parentesco ou amizade. Como reis e rainhas também são chefes de Estado, o número de políticos estrangeiros é relativamente reduzido. Inclui os presidentes da Irlanda, da Hungria e da Polônia, além dos três principais integrantes da cúpula da União Europeia. Joe Biden fez desaforo e disse que não vai.

Todo mundo já sabe que o príncipe Harry finalmente aceitou o convite, mas vai deixar mulher e filhos na Califórnia. Monarquistas mais arrebatados estão sonhado com uma reconciliação entre o rei e seu caçula, dedicado, desde que se mudou para os Estados Unidos, a falar mal do pai e do irmão, William.

Disciplinadamente, os dois mantiveram-se em silêncio, uma política inteligente para não transformar o caso em bate-boca real. Sob o manto do off, algumas informações acabaram vazadas com o tempo. Por exemplo: Charles deixou de atender os telefonemas do filho depois de uma conversa em que Harry falou palavrões. Quando a rainha perguntou o motivo da ruptura, Charles respondeu “Eu não sou banco” — referência às exigências de dinheiro que Harry fazia.

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Apesar do desejo de modernização, que inclui entre os doze corais convidados um formado por deficientes auditivos, o cerne da cerimônia que é realizada em Westminster há quase mil anos é ancorado na tradição. Charles receberá do arcebispo de Canterbury, um ex-executivo da indústria petrolífera que é mais politicamente correto do que o rei, a coroa de Santo Eduardo, usada unicamente nessa cerimônia.

Apesar do nome, ela não pertenceu ao rei coroado em 1042 e canonizado 100 anos depois: o original inspirado nele foi desmanchado e possivelmente fundido durante a revolução de meados do século XVII, quando a monarquia passou dez anos abolida (como a guerra civil redundou numa ditadura militar de fato, muitos acharam que não ter rei não era uma ideia tão boa assim e o regime acabou restaurado).

A coroa de Santo Eduardo foi forjada depois da restauração para o último antecessor com o mesmo nome do rei atual, Charles II, em 1661, e tem pedras históricas entre as 444 gemais preciosas. O rei vai se sentar na Cadeira da Coroação, que é uma cadeira mesmo, não um trono, sob a qual fica a Pedra de Scone ou Pedra do Destino com inscrições que remetem a antigos reis escoceses que a usavam – algo parecido com a ficção de Guerra dos Tronos.

No momento da unção, quando a mistura de óleos é passada no peito e na fronte, Charles e Camilla ficarão sob dosséis levados pelos respectivos netos e outros pajens. Como um super-herói de história em quadrinhos, o rei usará em determinado ritual da cerimônia, sobre o uniforme de gala, uma peça chamada, no original em latim, de Supertunica, muito parecida com a batina dos padres, mas tecida em fios de seda e ouro. 

Começou a ser usada nas coroações da era medieval e é uma referência, de novo, ao caráter religioso da cerimônia. Nenhum rei europeu usa mais essas coisas, nem sequer coroa, o que torna a cerimônia britânica mais interessante ainda de ser vista, como produto de rituais tão incrivelmente anacrônicos que parecem estar acontecendo num passado distante.  

Ao mesmo tempo, são emoldurados pelo contexto contemporâneo de um rei que quer acertar, tendo à sua frente um reinado inevitavelmente curto, e parecer sintonizado com o mundo “woke”. Em torno dele, a mulher que traiu Diana e agora será coroada rainha, o filho rompido, o filho certinho e sucessor e a linda Catherine, agora princesa de Gales, com direito a não ser chamada pelo apelido de Kate, e o sucessor número dois, George, de 9 anos, que carregará uma espada ritual, cercados por toda a pompa que só os britânicos são capazes de produzir.

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