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O que os chilenos não querem: uma constituição que rachava o país

Bandeira nacional, integridade territorial e sistema jurídico único são valores que o voto esmagador pela rejeição tentou minar

Por Vilma Gryzinski 6 set 2022, 08h02
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  • A bolsa subiu, o peso caiu e outros sinais indicaram que os chilenos optaram pelo realismo ao rejeitar a proposta de uma nova constituição

    Mesmo ao custo de parecerem esquizofrênicos: 78% dos eleitores que foram às urnas aprovaram a criação de uma constituinte em 2020. A maioria também elegeu representantes de esquerda e colocados sob o rótulo genérico de progressistas. E o quadro se completou com a eleição de um presidente que se diz socialista democrático, mas também já se definiu como mais radical do que os comunistas, Gabriel Boric.

    Quando os eleitores se depararam com o resultado, um esmagador volume de 388 artigos distribuídos em 178 páginas criando um Estado tão hipertrofiado que entre seus deveres estava “proteger a gastronomia nacional”, caiu a ficha.

    A rejeição avassaladora de 62%, muitos pontos acima da diferença de 10% prevista pelas pesquisas, expressou o repúdio às propostas que as esquerdas deslumbradas achavam o máximo. A mais rejeitada criava um estado plurinacional e um novo sistema de justiça para acomodar as tradições dos povos indígenas – mapuches na maioria -, que passariam a ser “coordenadas em plano de igualdade com o Sistema Nacional de Justiça”.

    Pode fazer sentido na Bolívia, onde 55% da população é indígena e 28%, mestiça. No Chile moderno e dinâmico das últimas décadas soou não só como um sinal de atraso, mas como um perigo. Na região de Araucária, existe uma organização armada de mapuches que atacam fazendeiros e outros produtores, incendeiam florestas e bloqueiam estradas. Até o esquerdista Boric teve que mandar o exército para proteger a população dos atos de violência.

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    Reconhecer “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, como diz a constituição brasileira, é a atitude correta em relação aos povos indígenas – embora não livre de conflitos. Os cerca de 900 mil indígenas brasileiros são 0,47% da população. No Chile, são 13%. Com o estabelecimento de um status separado para eles, seria criado um grupo privilegiado e até, se o sentimento se espalhasse, separatista, com amparo no texto constitucional.

    A maioria dos chilenos não gostou, acreditando que a criação de mais direitos para um grupo, mesmo que for para reparar graves injustiças do passado, desequilibra o conceito de igualdade. Um só país, com território indivisível e símbolos como a bandeira respeitados parecem ideias reacionárias, principalmente diante do entusiasmo de grêmio estudantil do texto constitucional rejeitado, mas estão profundamente arraigadas.

    No caso da bandeira, teve o agravante ocorrido durante um evento de apoio à aprovação. Um integrante de um grupo de drag queens enfiou uma bandeira entre as nádegas, expostas para o público. As colegas falaram em “abortar o Chile”. Imaginem o sucesso disso com eleitores que não gostam nada desse tipo de show.

    Heraldo Muñoz, ex-chanceler no governo da socialista Michelle Bachelet e ex-embaixador no Brasil, resumiu criteriosamente no El País o que deu errado: “O processo constitucional esteve repleto de declarações e performances infelizes de alguns constituintes, premunidos de um espírito refundacional que gerou reticência entre a população e foi rechaçado porque surgiram dúvidas, inclusive em setores de centro-esquerda, sobre normas relativas à plurinacionalidade, à unidade do Estado, ao sistema político, aos pesos e contrapesos em um sistema presidencial, à institucionalidade judicial”.

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    Nicolás Maduro achou que tinha que meter a colher na “derrota do projeto histórico” e falou sobre “a dor para os povos da América Latina e do Caribe”. E ainda espetou Boric: “Faltou uma liderança firme, clara, credível, com apoio popular, que se pusesse à frente do texto constitucional”.

    Boric sabia que a constituição “woke”, como é moda dizer, seria rejeitada e preparou o terreno para não parecer um perdedor total, o que não é muito fácil diante do fato que ele próprio criou um ar de plebiscito sobre seu governo, de apenas seis meses. Anunciou “prontos reajustes” no governo e gestos em direção à oposição. Apelou a um diálogo “sem maximalismos, violência e intolerância”. Na derrota, agiu certo. Tem que não se emparedar mais ainda do que já fez ao apostar tanto na aprovação da nova Carta Magna.

    O Chile não está “polarizado”, “dividido” ou mergulhado em incertezas. Ao contrário, uma certeza muito grande foi expressa nas urnas: 62% da população não quer uma constituição que faça sucesso na “bolha” – as elites das redes sociais e dos meios de comunicação seduzidos pelas políticas identitárias – e não diga de onde sairiam os recursos para criar o paraíso sobre a terra, incluindo o dever do Estado de combater as mudanças climáticas. Criar paraísos é uma atividade comprovadamente perigosa como se viu ao longo da história humana, por redundar em seu oposto.

    Uma nova constituição foi o resultado de um pacto nacional para criar uma alternativa aos protestos que a certa altura pareciam inclinados a devorar o país inteiro. Esse processo continua. “Claramente, haverá uma volta ao consenso centrista”, disse ao El País o diretor de uma consultoria política, Juan Pardo.

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    “Consenso centrista” pode não ser sexy como as propostas de refundação, mas é o que garante processos civilizados e construtivos – inclusive aos 38% que votaram pela constituição rejeitada.

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