“Você quer ver a cabeça dele?”, perguntou uma menina de quinze anos a um repórter que entrevistava alunos sobre a morte de Samuel Paty.
Antes que os responsáveis pelas redes sociais interferissem, a foto circulou com velocidade acelerada, numa espécie de epílogo macabro da morte virtual que precedeu a morte real.
Foi pelas redes que o caso saiu da sala de aula e entrou na mira dos fanáticos. Um deles, Abouallakh Anzorov, de 18 anos – pouco mais que a idade dos alunos do professor de história e geografia – resolveu agir.
Percorreu os 80 quilômetros que o levariam até a escola de Bois-d’Aulne levando uma faca de cozinha de 35 centímetros e algumas centenas de euros para comprar informações de estudantes sobre o professor.
Samuel Paty foi atacado na rua com várias facadas na cabeça. Quando tombou, Anzorov decapitou o corpo e postou a foto no Twitter. Foi morto depois com nove tiros, ao resistir a se entregar à polícia.
Anzorov era da Chechênia, a república muçulmana da Federação Russa que produziu rebeldes separatistas e jihadistas para o ISIS, o Estado Islâmico derrotado no Iraque e na Síria, mas não na cabeça dos fundamentalistas que seduziu com sua mensagem radical.
Recebido como refugiado na França, o jovem checheno retribuiu com um assassinato monstruoso que produziu uma reação espontânea de repúdio como só os franceses sabem fazer.
Veementes, inflamados, levando cartazes que evocam os valores republicanos e reafirmam a resistência ao fanatismo, cidadãos comuns expressaram sua revolta em atos espontâneos.
Cartazes como “Eu sou professor” ou “Eu sou Samuel” evocaram, em escala menor, a reação à morte dos jornalistas do Charlie Hebdo, o jornal satírico palco do massacre de janeiro de 2015.
Foram duas caricaturas do Charlie que o professor Paty mostrou numa aula de educação moral e cívica dedicada a tratar da liberdade de expressão.
Antes de exibir os desenhos, um grosseiro, outro simpático, do profeta Maomé, ele sugeriu que os alunos muçulmanos mais sensíveis poderiam deixar a sala de aula.
Houve reclamações à diretoria do pai de uma aluna, a reação negativa foi crescendo nas redes e um conhecido insuflador do fanatismo entrou na história com uma fatwa, uma sentença de morte por motivo religioso.
A hashtag #profIslamophobe ferveu.
Depois do assassinato hediondo, vários desses envolvidos foram detidos.
Mesmo que alguns sejam considerados cúmplices e processados, permanece o fato de que, em graus variados, uma camada da população muçulmana da França age como um exército em território inimigo: rejeita fundamentos nacionais como a liberdade de expressão; não reconhece as autoridades constituídas e tem uma vasta rede de conexões que protegem ou insuflam os radicais.
Matar um professor de segundo grau de 47 anos por ter mostrado caricaturas de Maomé é considerado um ato nobre nesses meios.
Não existe educação cívica que mude isso.
“Existe uma falha de diagnóstico no fato de não se abordar o fanatismo como um erro religioso, mas simplesmente como um desvio social ou psicológico”, disse ao Le Monde o frei dominicano Adrien Candiard, um estudioso do islamismo.
Como um governo enfrentaria teologicamente uma questão tão complexa?
Não há respostas fáceis.
Aliás, nem difíceis, no caso do renascimento do jihadismo em países europeus onde vicejam como nunca todas as benesses da civilização ocidental.
Amanhã haverá uma cerimônia fúnebre no pátio da Sorbonne, com a elegante solenidade desse tipo de ato. O professor receberá, postumamente, a Légion d’honneur.
“O medo vai mudar de lado. Os islamistas não podem mais dormir tranquilos nesse país”, prometeu Emmanuel Macron.
Infelizmente, a realidade indica o oposto.
As redes estão bombando com as comemorações do crime bárbaro.