Guerra da narrativa: Putin se consolida como vilão, Zelenski como herói
Um ator e humorista que participou do Dança dos Famosos teria pouco cacife para enfrentar o poderoso russo, mas é o que está acontecendo
“Jesus, este cara é corajoso”. A curta definição de Boris Johnson resumiu o que nenhuma pessoa deixaria de pensar ao ver os vídeos em que Volodimir Zelenski diz que vai continuar exatamente onde está, num bunker do palácio presidencial, lutando pela Ucrânia.
Num deles, gravado em frente a Casa das Quimeras, um palacete art nouveau que poderia ter sido feito por Gaudí, ele chega a sorrir, apesar da gravidade extrema da situação e da barba por fazer.
Todo mundo adora uma história de Davi contra Golias, um arquétipo presente em inúmeros mitos ancestrais. Mas poucas vezes o mundo teve a oportunidade de ver uma história dessas se desenrolando em nossas telas, ao vivo, com personagens tão definidos e fascinantes.
Por causa dessa história, Zelenski, sem nenhuma possibilidade de vencer no campo bélico, está ganhando a guerra da narrativa. Com todo seu exército de guerreiros virtuais, treinados para distorcer fatos até o ponto do absurdo, seu xará, Vladimir Putin, está sendo ridicularizado em inúmeros memes, em muitos deles com um gato branco no colo, numa paródia de Ernst Stavro Blofeld, o clássico vilão de James Bond.
Ser parodiado quando esperava ser temido é um golpe cruel para Putin. Não que faltem motivos para sentir medo da brutalidade criminosa que tem demonstrado, inclusive ao anunciar que colocou em “regime especial de moblização” as tropas que operam o arsenal nuclear russo.
Até na hora de uma ameaça monstruosa como essa, Putin dá um sinal indireto de fraqueza: está sentindo que a reação dos países ocidentais, que parecia tão tíbia diante de uma abominação como a invasão de um país sob pretextos absurdos, vem crescendo – e doendo.
A mais dolorosa foi cortar um certo número de bancos russos do Swift, o sistema de conexões internacionais que reúne onze mil instituições financeiras do planeta e permite que as compensações em diferentes países sejam realizadas automaticamente. O banco central russo também está sendo penalizado, o que afeta as reservas de 630 bilhões de dólares que deveriam prover um bom colchão para as sanções contra a Rússia. Aumentar a taxa de juros para 20% dificilmente vai ajudar.
Depois de anos de contemporização, durante a era Merkel, o novo primeiro-ministro alemão, Olof Sholz, está mostrando pulso férreo. Não só deu por enterrado o Nord Stream 2, o grande gasoduto que abasteceria mais ainda a Alemanha com gás russo, como liberou o envio de armamentos ofensivos à Ucrânia.
Quando a crise já estava armada e os Estados Unidos avisavam que uma invasão era inevitável, Sholz passou pelo vexame de autorizar apenas o envio à Ucrânia de cinco mil capacetes, para manter a política alemã de não armar países em conflito.
Putin acabou rapidamente com essa neutralidade.
Tão ou mais importante do que o aperto das sanções econômicas é a reação espontânea de revolta da opinião pública diante da invasão de um país inocente. A causa da Ucrânia não conta com o apoio da esquerda mais fossilizada e tem encontrado uma vergonhosa oposição entre a direita populista, que “fechou” com Putin, numa atitude quase suicida.
Em compensação, tem a seu lado as multidões anônimas que circulam continuamente entre Facebook, Instagram, TikTok e outros meios digitais. A influência das redes é tamanha que até filhas de integrantes da elite russa reagiram negativamente à invasão da Ucrânia.
Durante uma hora, ficou no ar o “No to War” postado por Ielizaveta Peskova. Ela é a loiríssima filha de Dmitri Peskov, que não só é o porta-voz de Putin como faz parte do reduzido círculo íntimo do todo-poderoso.
A neta de Boris Ieltsin, o primeiro presidente da Rússia pós-soviética, Maria Iumasheva, também apoiou o “No to War”.
Outra “filha rebelde” foi Sofia Abramovitch. “A maior e mais bem sucedida mentira da propaganda do Kremlin é que a maioria dos russos apoia Putin”, postou a filha de Roman Abramovitch (13,4 bilhões de dólares).
Sofia mora em Londres e o pai em Mônaco, pois nunca conseguiu o visto de residência na Inglaterra por causa de suas conhecidas ligações com Putin. Prevendo mais sanções, ele transferiu um de seus brinquedos preferidos, o Chelsea, para uma fundação beneficente encarregada agora de administrar o time.
Putin, evidentemente, está pouco ligando para o que a mimada prole de multimilionários tecla no celular.
Mas não pode gostar de ver a estatura – moral, tanto o ucraniano quanto o russo têm menos de 1,70 metro – conquistada por um ator cuja história todo mundo a essa altura conhece e que já parecia suficientemente irreal mesmo antes da guerra.
Participante da Dança dos Famosos e protagonista da série humorística em que um professor é eleito presidente por se revoltar contra a corrupção desbragada na Ucrânia, Zelenski, cuja língua materna é o russo, já deixou uma frase muito mais significativa do que todo o palavrório pseudohistórico de Putin para justificar a invasão da Ucrânia.
Diante da oferta dos Estados Unidos para tirá-lo do país, ele respondeu: “Eu preciso de munição antitanque, não de uma carona”.
O cara é realmente corajoso.
Até Donald Trump, que não tem nada de bobo, percebeu que a virada na maré e começou a elogiar a coragem de Zelenski. É assim que a narrativa muda.