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Cortar salários na crise? O exemplo que não vem de cima

De má vontade, jogadores como Messi aceitaram ganhar menos, mas políticos e líderes que deveriam dar o exemplo são muito mais relutantes

Por Vilma Gryzinski 2 abr 2020, 07h53
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  • Vidas, carreiras, fortunas e empregos estão sendo ceifados com resultados catastróficos, mas ainda falta muito para uma compreensão coletiva do momento de alta volatilidade.

    Por exemplo, quais líderes políticos voluntariamente se apresentaram para ganhar menos e, mesmo que seja apenas um gesto simbólico, partilhar dos sacrifícios, inclusive daqueles que estão tendo ou terão seus salários reduzidos ou cortados?

    Luis Lacalle Pou, o presidente do Uruguai que mal assumiu e já entrou na roda alucinante do vírus, fez o que poucos estão fazendo: um corte de 20% nos salários dos políticos e servidores ou aposentados do serviço público com rendimentos mais altos, acima de 120 mil pesos uruguaios, cerca de 14 mil reais.

    Os descontos são gradativos, valem por dois meses e foram aprovados por unanimidade pelo Senado.

    “Não vamos descontar o salário dos funcionários públicos e políticos para economizar, mas para gastar”, disse Lacalle. O dinheiro vai para o Fundo Coronavírus, destinado aos mais necessitados.

    A reação de um dos principais líderes sindicais do funcionalismo público, Gabriel Molina, foi imperdível: “Realmente, foi muito inteligente o que esse filho da *** fez, desculpem a expressão. Sair dizendo que não queremos ser descontados para dar aos que necessitam nos deixa muito mal parados com os trabalhadores”.

    Molina depois pediu desculpas mais explícitas, mas sua declaração resume o que tanta gente acha: reduzir salários num momento de emergência global, tudo bem; desde que não seja o nosso.

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    “Não está na pauta”, disse um integrante do governo argentino sobre a possibilidade de que o presidente Alberto Fernández tome uma iniciativa semelhante à do vizinho.

    Governadores argentinos anteciparam-se isoladamente e fizeram reduções.

    Um argentino muito mais famoso, Lionel Messi, aceitou de muita má vontade o corte de 70% nos salários dos jogadores de ouro decidido pela direção do Barcelona.

    Messi ganha 8,3 milhões de euros por mês, à altura do retorno que dá – ou dava, antes da crise.

    Indiretamente, reclamou de Josep Maria Bartomeu, o presidente do time, por insinuar que os gênios milionários do futebol não estavam dispostos a colaborar.

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    Uma crise parecida está acontecendo no Tottenham, com jogadores relutantes em aceitar cortes na faixa dos 20%, enquanto funcionários comuns são colocados em licença não remunerada, assumida pelo governo em parte.

    “Todas as pessoas do planeta serão afetadas e nunca testemunhei algo tão impactante”, apelou o presidente do time, David Levy, que está na turma que sofreu corte.

    Fora o Uruguai, o governo de Singapura cortou um mês de salários dos ministros e parlamentares, mais uma quinzena de altos funcionários públicos, quando o novo coronavírus começou a entrar no país, em fevereiro.

    Singapura, com população majoritariamente de origem chinesa, é um dos países asiáticos que conseguiu controlar a epidemia com medidas tipicamente planejadas e duras. 

    Além da vantagem de ser praticamente uma cidade-estado, com padrão de vida altíssimo e cultura de extremo controle social. As primeiras duas mortes de Covid-19 foram notificadas só em 21 de março. 

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    O derretimento dos mercados e a paralisação das atividades econômicas estão custando caro para os muito ricos. 

    Um levantamento do dia 24 de março dava que 500 mil milionários americanos – literalmente, com bens acima de 1 milhão de dólares – simplesmente saíram a lista.

    Um cálculo feito há uma semana – parece um século – soma uma perda de 1,3 trilhão de dólares para as 500 pessoas mais ricas do mundo.

    Exemplos: Bill Gates, que no meio da crise passou definitivamente só para a filantropia, perdeu 18 bilhões; Warren Buffett, 19;  Bernard Arnault, 35 bi.

    Quem se deu bem foi o mais rico de todos, Jeff Bezos, o dono da Amazon, um dos negócios que está crescendo pela demanda vertiginosa de entregas. Somou mais 4,5 bilhões desde o começo do ano.

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    Não vão ficar pobres ou começar a saltar pelas janelas, como pode acontecer com outros ricos mais “normais”.

    Mas sabem que vão ter que pagar mais. Todos vão ter.

    O Financial Times já propôs que os dividendos para os acionistas de bancos, pagos nessa época, sejam cortados. Inclusive por causa da dinheirama que os próprios bancos estão pegando para não quebrar.

    O capitalismo é assim: tem flexibilidade para se adaptar, rearranjar o modus operandi, reerguer-se das crises.

    Nunca isso será tão testado como agora.

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    O exemplo do corte nos próprios salários de políticos e dos altamente privilegiados é uma gota d’água nessa tempestade.

    A pergunta que mais dá medo de fazer, pois já desconfiamos das respostas, em matéria de economia: por quanto tempo os países vão segurar as medidas de emergência que estão segurando as demissões em massa ou tapando os buracos mais urgentes?

    Os líderes políticos que não conseguirem ver o que vem por aí podem perder mais do que salários e mordomias.

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