Homero fez, Shakespeare também. Os renascentistas fizeram, em massa. Usar elementos de outras culturas sempre foi quase obrigatório para os praticantes das grandes artes – e das pequenas também. Justo quando chegou na hora da Beyoncé… Bem, a história da “apropriação cultural” já vinha rolando, como uma das discussões mais cretinas dos atuais tempos de tantas cretinices, mas ganhou um destaque muito maior quando a cantora americana surgiu em participação especial, loira e bela como uma deusa, num vídeo do grupo Coldplay com temática indiana.
A música é alegre, as paisagens são deslumbrantes e foram tomados cuidados para não disfarçar demais a pobreza, com adoráveis meninos dançando na rua com Chris Martin. E Beyoncé, claro, está sublime como uma atriz de Bollywood, com roupas tradicionais indianas e tatuagens de hena, ou mehendi, nas mãos. Logo pipocaram as acusações de apropriação da cultura alheia, muito comuns quando envolvem algumas das mais divulgadas entre infindáveis tradições indiana. Já foram acusados de apropriação os praticantes yoga, as usuárias de bindis (os pontinhos na testa) e todos os artistas que fazem referências ao universo dos filmes bollywoodianos.
Será que, em contrapartida, os indianos teriam que abrir mão dos trens, da língua inglesa, da democracia, da literatura moderna e outras apropriações? Claro que não. Já deu para perceber que multiculturalismo, nesse caso, só deve ser exercido como admiração extasiada e acrítica dos ex-dominadores diante da cultura de antigos dominados.
Se o conceito da apropriação tivesse duas mãos, músicos negros americanos seriam acusados de subtrair hinos religiosos para criar a igreja celestial do jazz. Sambistas brasileiros não poderiam praticar o culto a São Noel Rosa. Nos desfiles de carnaval, não teria sido resolvido um caso real de apropriação, o que contrapõe as sambistas da “comunidade” e as famosas que trazem visibilidade (solução: existem hoje rainhas, princesas, musas e outras entidades).
Também, livrem-nos os céus, estaria excluído o patrocínio de potências estrangeiras alienígenas, como o da França à escola paulistana Vai-Vai. Nem que fosse para provar, como declarou à Folha de S. Paulo o cônsul Damien Loras, que o objetivo é “desfazer essa visão elitista de que a França é coisa chique e inacessível, um país branco e do luxo”.
Como é griiingo, o cônsul está escusado de conhecer a insubstituível frase de Joãozinho Trinta sobre luxo e classes sociais. Ele é casado com a bela Alexandra Loras, filha de mãe francesa e pai de Gâmbia, que usa todas as oportunidades possíveis para dizer que o Brasil é o país mais racista que já conheceu.
Não adianta nem perguntar qual seria a reação se a mulher de um diplomata americano fizesse declarações assim. Alexandra Loras tem opiniões igualmente negativas sobre o país que seu marido representa. O sangue ainda estava nas calçadas de Paris depois dos atentados de 13 de novembro do ano passado, praticados por adeptos do Estado Islâmico, quando ela declarou, à mesma Folha, que “precisamos aprender a conviver, nos abrir para o diálogo inter-religioso” e que quando vê “toda a imprensa falando que esses jovens são estúpidos, eu me pergunto: será que não ignoramos o potencial deles? Como não conseguiram desenvolver seus talentos na nossa sociedade, eles escolheram esse lado escuro da força para existir”.
Como todos devemos ter o maior orgulho de nos apropriar de direitos como a livre expressão, cuja universalidade nasceu na França, achamos que Alexandra, Beyoncé e todas as outras pessoas do mundo são livres para manifestar suas opiniões, desenvolver os seus talentos e se apropriar de todas as culturas, seja para produzir obras de arte, fazer vídeos de música popular ou sambar no carnaval. Allah-lá-ô para todos.