“Eu nunca, jamais, em circunstância alguma, me curvarei aos terroristas talibãs”. Surpreendentemente, o vice-presidente do Afeganistão, Amrullah Saleh, honrou o prometido antes da queda de Cabul.
Enquanto o presidente Ashraf Gani sumia do mapa, para reaparecer nos Emirados Árabes Unidos, onde desmentiu terminantemente que tivesse fugido num helicóptero carregado com 169 milhões de dólares (o número quebrado aumenta a credibilidade, aos olhos de muitos afegãos, da história apócrifa), seu vice foi para o único lugar que resistiu à fulminante ascensão dos talibãs.
O Vale do Panjshir é tão protegido pelas cordilheiras que o cercam – um prolongamento dos Himalaias – que não foi tomado nem na época da invasão soviética e nem pelos talibãs que emergiram da guerra civil dos anos noventa.
Seus habitantes são da etnia tadjique, o que ajuda a explicar o espírito de resistência ao Talibã, que é essencialmente formado pelo grupo étnico dominante no Afeganistão, os pashtuns.
Quando não estão combatendo invasores, locais ou estrangeiros, muitos habitantes do vale se dedicam à extração de esmeraldas, comparáveis em qualidade às da Colômbia, o que aumenta a aura de romantismo, certamente exagerada, mas quase inevitável.
A figura mais romântica foi Ahmed Shah Massoud, quase um personagem de filme, pela estampa imponente e a aura de invencibilidade. Até o nome da coalizão que criou parece coisa de Game of Thrones: a Frente Unida Nacional, mais conhecida como Aliança do Norte.
Para quebrar esta aura, a maior aliada do Talibã, a Al Qaeda, recorreu a um atentado terrorista de manual, desfechado apenas dois dias antes do 11 de Setembro de 2001.
Militantes da frente terrorista do saudita Osama Bin Laden passaram-se por jornalistas e explodiram uma bomba escondida numa câmera.
Talibã e Al Qaeda foram obrigados a fugir, com grande perdas, quando os Estados Unidos invadiram o país, em dezembro de 2001.
A volta triunfal dos ultrafundamentalistas, selada antes mesmo do fim da desastrada retirada americana, está reencenando o mesmo confronto entre talibãs e tadjiques do Vale do Panjshir. O comandante da resistência hoje é o filho do líder assassinado, Ahmed Massoud, tão prestigiado que teve direito até a escrever um artigo na páginas de editoriais do Washington Post.
“Temos estoques de munição e armamentos que amealhamos pacientemente desde a época de meu pai porque sabíamos que este dia chegaria”, escreveu ele.
“No entanto, sabemos que nossas forças militares e logísticas não serão suficientes. Vão se esgotar rapidamente se nossos amigos no Ocidente não acharem um modo de nos abastecer”.
A probabilidade de que isso aconteça é extremamente baixa. O governo americano quer encerrar o capítulo Afeganistão nem que seja a um custo alto, como está acontecendo no momento.
Foram-se os tempos – românticos – quando Bernard-Henry Lévy, o filósofo francês de camisa aberta no peito, falou a Massoud pai e seus homens numa caverna do Panjshir, dizendo “quando vocês lutam por sua liberdade, lutam pela nossa liberdade”.
A cena foi relembrada pelo filho e herdeiro no artigo no Post, em outra vã tentativa de amolecer corações ocidentais
Não funcionou nem vai funcionar. Em sigilo, uma fonte ligada ao jovem Massoud, que estudou em prestigiadas instituições na Inglaterra, disse que ele já está procurando um meio de negociar a rendição sem comprometer demais a honra. “Seria muito simbólico por causa de quem foi seu pai”, acrescentou.
Ao contrário do que acontece na história em quadrinhos, a aldeia de Asterix dessa vez não parece destinada a permanecer como um mitológico foco de resistência. Além de políticos como o ex-vice Amrullah Salleh e um ex-ministro da Defesa, algumas centenas de soldados, comandos de operações especiais e pilotos, que não aceitaram a rendição, também fugiram para o vale dos tadjiques. Não se desenha para eles um final heroico.