Na espécie de missa com que o ex-presidente Lula se despediu da vida pública em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, antes de se entregar à Polícia Federal e seguir para a prisão em Curitiba, sua sucessora, Dilma Rousseff, chegou a ter o microfone nas mãos. Quem acompanhou pela TV a bênção em memória da ex-primeira-dama Marisa Letícia, no entanto, teve dificuldade de ouvir o que disse Dilma — para não dizer que não escutou coisa alguma — entre a fala do bispo Dom Angélico Sândalo Bernardino e a do próprio Lula. As palavras da ex-presidente foram encobertas pelas de jornalistas e comentaristas de plantão. É fato que Dilma ficou famosa pelos amalucados discursos improvisados, mas a má qualidade do discurso político não é privilégio de Dilma, que por essa e por outras foi alvo de vitupérios irreproduzíveis e chegou a estampar um adesivo, colado em diversos carros, em que aparecia de pernas abertas no ponto da lataria onde um frentista deve inserir a mangueira de combustível.
A escolha da personagem, aqui, não é partidária nem gratuita: Dilma é citada pela historiadora Mary Beard em seu último livro lançado no país, Mulheres e Poder – Um Manifesto (Crítica), em que a especialista em Roma e na Antiguidade Clássica percorre as raízes do machismo para chegar às suas pontas mais profundas. Dilma, mostra a scholar de Cambridge, faz parte do rol de mulheres da política comparadas à horrenda Medusa, numa tentativa de silenciar sua voz.
O silenciamento, mostra Mary Beard, uma historiadora reputada por livros como o calhamaço SPQR, em que repassa mil anos da história romana, seu tema dileto, é milenar. A autora britânica não chega a citar o mito hebraico de Adão e Eva ou o grego de Pandora, em que mulheres são as agentes responsáveis por trazer a desgraça ao mundo, contos que podem dar ensejo, e de fato deram, a leituras de teor misógino. Ela se concentra em histórias que refletem sobretudo o ato de calar a voz feminina, com alta dose de violência verbal, fisica ou simbólica.
Mary Beard abre o livro com uma passagem da Odisseia, de Homero, um dos tantos clássicos que saca para demonstrar como a mulher é há milênios reprimida e relegada ao espaço privado, onde sua voz pode ressoar com “liberdade”. O trecho, em que a fiel e paciente Penélope é calada pelo próprio filho, Telêmaco, é segundo a historiadora “o primeiro exemplo registrado de um homem mandando uma mulher ‘calar a boca’ e afirmando que a voz dela não deveria ser ouvida em público”.
Penélope, assediada por homens variados, a quem rejeita enquanto aguarda o retorno de Ulisses, o herói da Guerra de Troia, pede ao bardo que se apresenta para essa multidão de pretendentes que mude o repertório. O bardo canta uma música sobre as agruras encontradas no retorno de Troia para casa, um tema triste e tenso para ela, óbvio. Telêmaco, um moleque de empatia zero, em vez de apoiar a mãe, passa um carão na coitada. “Mãe”, diz o garoto, “volte para os seus aposentos e retome seu próprio trabalho, o tear e a roca… Discursos são coisas de homens, de todos os homens, pois meu é o poder nesta casa”. Obediente, a eposa de Ulisses se retira.
“A explosão de Telêmaco foi apenas o primeiro caso numa longa série de amplamente bem-sucedidas tentativas, que se estendem por toda a Antiguidade greco-romana, não apenas de excluir as mulheres do discurso público, mas também de alardear tal exclusão. No início do século IV a.C., por exemplo, Aristófanes dedicou uma comédia inteira à ‘hilariante’ fantasia de que as mulheres deveriam assumir o controle do Estado”, anota Mary Beard.
Houve mulheres que ousaram falar em público, sim. Mas elas foram comparadas, como aconteceu por aqui com Dilma Rousseff, a animais. Galinhas, porcos, vacas e outros bichos são até hoje convocados para depreciar e deslegitimar o discurso feminino, num tom que dificilmente se vê ser usado contra homens, digam as bobagens que disserem.
Apenas em dois casos a voz feminina recebia permissão para se fazer ouvir em público no mundo clássico: quando defendia a sua “categoria” e os seus interesses (lar, filhos, marido, o coletivo feminino) e quando narrava um episódio em que uma mulher era vítima ou mártir. Ainda assim, a abertura era bastante registro.
O livro, curto porque baseado em palestras que Mary Beard realizou, reúne exemplos pesados de vítimas, como o de mulheres estupradas que terminam transformadas em górgona (Medusa, na mitologia), ou com a língua cortada (a Filomela de Metamorfoses, de Ovídio) ou que se matam depois de ter a coragem de denunciar seu agressor (o príncipe Sexto Tarquínio, acusado por Lucrécia, no que seria um caso real da história primitiva de Roma).
Demonstrar a violência do silenciamento feminino é uma forma de questioná-lo e superá-lo, defende Mary Beard, para quem conhecer o passado é caminho para transformar o presente.
“Espero que tal visão de longo alcance nos ajude a ir além do simples diagnóstico de ‘misoginia’ em que, com alguma preguiça, tendemos a reincidir. Tudo bem, ‘misoginia’ é uma maneira de descrever o que está acontecendo”, escreve a historiadora. “Se quisermos compreender o fato – e fazer alguma coisa a esse respeito – de que as mulheres, mesmo quando são silenciadas, ainda pagam um preço muito alto para ser ouvidas, precisamos reconhecer que as coisas são um pouco mais complicadas e que há uma longa história por trás de tudo.”