Marina quer novo regime jurídico para cidades em emergência climática
Ministra do Meio Ambiente recusa o “eu avisei” sobre tragédia no Rio Grande do Sul e prepara com outros ministros grande plano de prevenção
Marina Silva, a ex-seringueira que é ministra do Meio Ambiente pela segunda vez, se recusa a assumir o papel do “eu avisei” em relação às mudanças climáticas e os consequentes eventos extremos, como a devastadora tragédia no Rio Grande do Sul.
Ela fala, sim, em “dor” ao testemunhar agora aquilo que tanto quis evitar. Há mais de 30 anos Marina pede que o Brasil se prepare, que siga um caminho que evitaria tragédias que atingem meio milhão de pessoas em um dos estados mais prósperos do país.
“É claro que gostaria que o aviso tivesse sido ouvido. Tudo que eu tenho evitado é não fazer a história do ‘eu te disse’, sabe? Porque eu acho que não é pedagógico, pode parecer presunçoso, pode criar distâncias”, afirma a ministra do Meio Ambiente.
“Na verdade, há uma contradição entre nós. A gente dá tanta credibilidade para o que a ciência diz que, se não fizer tais e tais procedimentos em relação ao câmbio, ao controle de inflação, isso é muito perigoso para a economia. E todo mundo cobra que se leve em conta o que a ciência econômica, que não é nem exata, está dizendo. Agora, tem outras coisas que a ciência mostra matematicamente que estão acontecendo e não se consegue esse nível de convencimento”, diz Marina Silva.
Em uma conversa de mais de uma hora com a coluna, ela descreve a experiência de visitar um estado devastado por um evento extremo e detalha como estão os últimos passos do plano nacional de prevenção para desastres naturais, que necessitará de um novo regime jurídico.
Usando um caderno de anotações da nova geração de “einks”, dispositivos eletrônicos que imitam a aparência da tinta comum em um papel, Marina Silva escrevia sobre como enfrentar esse futuro assustador que, avisado por ela há anos, finalmente chegou à nossa porta. Leia abaixo os principais trechos da entrevista de Marina Silva:
Ministra, como está o plano de prevenção para desastres naturais e eventos extremos?
Marina Silva – Eu ainda não levei para o presidente. Hoje toda a lógica que a gente trabalha é a gestão do desastre [a ministra mostra um papel com um modelo dividindo as ações antes e após eventos extremos]. Mas precisa aumentar cada vez mais a gestão do risco, antes dos eventos extremos. Porque quanto mais a gente conseguir dar densidade a essas ações, mais você diminui as consequências dos desastres. Porque o desastre climático vai acontecer. A gente pode estar mais preparado, menos preparado ou sem preparo algum. A gente pode mitigar mais ou a gente pode não mitigar nada das consequências do que vem pela frente. E aqui a gente trabalha. Hoje a ideia é em cima do que se começou em fevereiro do ano passado. Fizemos dois seminários técnicos, três seminários técnicos científicos envolvendo vários setores de governo, sociedade civil, e fomos adensando o que seria um esforço governamental para o enfrentamento da emergência climática, nessa ideia mais preventiva. Nesses últimos dias, a gente intensificou um processo que, na minha perspectiva, não é tão complexo e de médio e longo prazo. Você não tem como dizer ‘eu tenho um plano’. Você vai ter uma versão 0.1 do plano, como o PPCDAm [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia], que já está na versão 0.5. Ele vai sendo ajustado de acordo com a dinâmica dos próprios eventos extremos, das questões climáticas, vai sendo ajustado de acordo com as possibilidades financeiras, com as possibilidades tecnológicas, às demandas sociais. Ele não parte do zero porque uma grande parte das medidas já está em andamento, seja do Ministério das Cidades, do Ministério de Transporte, da Agricultura, da Energia, da Comunicação, da Saúde, do Desenvolvimento Agrário e nós aqui mesmo no Ministério do Meio Ambiente.
E como colocar isso em ação, ministra?
Marina Silva – Existem vários eixos para mitigar. Se a gente não mitigar o que leva ao aquecimento do planeta, a gente vai ficar repetindo operações em cima de operações porque só vai intensificar os problemas, os eventos climáticos extremos, mais agravados e frequentes. A redução de emissões, a redução de metano é fundamental. A outra parte é a adaptação e o plano lida com isso. Vamos ter que nos adaptar ao que já está acontecendo. E há ainda uma outra parte que antecede a própria adaptação, que é a preparação. Eu posso não estar adaptado, mas tenho que estar preparado para esses eventos. Como é que você pode fazer isso? A ideia era: caminhos para situações dentro da velha normalidade, certo? Na situação da velha normalidade, acontece o desastre, a prefeitura e o estado decretam emergência e o governo federal reconhece. E aí vêm ações emergenciais, depois tem planos de suporte como o de reconstrução. Mas isso já passou, temos todo um marco regulatório, os processos são céleres, não passam por licitação, tem todo um rito. Agora, a emergência climática pressupõe anteceder esse momento do evento e poder fazer as intervenções de forma antecipada. Ou seja, eu teria que ter um regime jurídico que decretasse a emergência climática, que reconhecesse a figura da emergência climática, com base em dados técnicos e científicos. Esses municípios aqui – ou esse estado – são vulneráveis a eventos climáticos extremos, caso do Rio Grande do Sul. Então esse estado vai pedir para ser reconhecido como estado de emergência climática. O governo federal faz esse reconhecimento e, a partir daí, você pode começar a ter ações que sejam continuadas e, no meu entendimento, com abordagens que sejam mais céleres, menos burocratizadas.
Então será um novo regime jurídico, ministra?
Marina Silva – A ideia é criar essa nova figura, esse novo regime jurídico e, a partir daí, uma série de conformações em termos de estruturas, de programas, de processos e, sobretudo, de suporte técnico e científico para fazer esse esforço de ter ações de prevenção aos efeitos dos eventos climáticos extremos.
Ministra, você tem se reunido com diversos ministros de estado, conversado com vários ministérios numa política transversal. Tem uma data para estar pronta?
Marina Silva – Sim. Como é um processo difícil, complexo e já estamos trabalhando nisso desde fevereiro do ano passado… espero que o quanto antes porque é um esforço colaborativo dos ministérios trabalhando em parceria. Isso começou com a minha ida ao Cemaden [Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais] naquele episódio de São Sebastião, numa reunião que eu e a ministra [da Ciência e Tecnologia] Luciana Santos fizemos. Ela remotamente, e eu lá dentro do Cemaden, passei o dia todo vendo quais eram as possibilidades de pensar algo que fosse preventivo. E aí nós duas concordamos que íamos fazer esse esforço. A partir daí, é uma força-tarefa que nós conseguimos articular. Então, fizemos os seminários, participaram vários ministérios e agora que aconteceu a tragédia no Rio Grande do Sul, ainda bem que estávamos adensando essa ideia, que indo para os caminhos finais. Por exemplo, me reuni com o ministro Vinícius Marques de Carvalho, da Controladoria, com o presidente do Tribunal de Contas, Bruno Dantas, e com o procurador-geral da República, Paulo Gonet. São conversas em que cada um aporta ali a sua contribuição. O que era a questão com o TCU e o procurador-geral? É possível pensar em um marco jurídico? Faz sentido? Legalmente sim, porque o artigo 34 da Constituição Federal coloca ali o critério da impessoalidade, da probidade, da eficácia. Então, com base nisso, as ações públicas e as políticas públicas têm o princípio da eficácia também.
Mas como isso funcionará na prática?
Marina Silva – Se a gente mantém a lógica da gestão apenas do desastre – e isso é necessário – fica a pergunta: nesse contexto, é eficaz? Então, se o instrumental que nós temos não dá conta desse novo normal, é possível que a legislação precise se adaptar também. A adaptação não é só de intervenções físicas. Ela envolve a cultura, as físicas e as de naturezas legais e jurídicas para que a gente possa se adaptar. Se eu tenho uma cidade como São Sebastião, por exemplo, com um plano diretor, que, em função de aspectos culturais, estéticos e de qualidade de vida, proíbe edificações acima de X andares, a parte plana é muito reduzida. O que acontece? As pessoas com mais posses moram na parte plana ou em casas e em apartamentos com um padrão de construção, digamos, baixo. Não são arranha-céus. Os pobres moram próximos às encostas. Esse plano diretor, para ser mudado, tem mil implicações, mas e se esse município está dentro da lista de municípios vulneráveis à mudança climática? E se tem uma lei que diz que aquilo ali está em estado de emergência climática? Vai ter que fazer uma adaptação ao próprio marco regulatório para poder verificar uma solução que se possa ter. Você vai deixar os pobres, que são os mais vulneráveis? Você vai mudar as pessoas de uma cidade? Às vezes é possível que o mundo, em alguns lugares, se prepare para cidades inteiras serem mudadas, como é o caso da Suécia, que está fazendo um esforço há muito tempo. Um projeto de 40 anos para mudar uma cidade inteira por causa da elevação do mar.
Fiz uma longa entrevista com o climatologista Carlos Nobre. Ele explicou que no Japão, mesmo não sendo possível prever terremotos, houve toda uma preparação para esse tipo de evento que diminuiu muito as mortes. Inundações e alagamentos, segundo ele, podem ser avisados para a população com bastante antecedência. A ideia do plano é passar por isso, inclusive, de tentar fazer o máximo possível para ajudar as pessoas a lidarem com a situação no momento que acontece?
Marina Silva – Sim. Por exemplo, hoje nós temos um risco climático instalado e você tem o risco climático prognosticado, não é? Isso quando a gente faz um prognóstico. Ele está instalado quando eu vejo que já tem alta pressão no Sudeste e no Centro-Oeste. Eu vejo que o oceano está aquecido, que virá um grande processo de evapotranspiração. Eu vejo que virá uma corrente fria da Amazônia, que está jogando vapor lá. Os rios voadores estão sem direção, o sistema de alta pressão não deixa dispersar essa umidade e ela se concentra em um determinado ponto. Eu posso ver que isso vai acontecer e avisar que em cinco dias vai ter uma grande chuva. Mas isso é você fazer a prevenção para o evento extremo já instalado, certo? Agora, se eu tenho uma lista de 1.942 municípios que, numa série histórica de 12 anos, foram sendo observados que aconteceram esses eventos. É em cima desses que eu vou poder fazer essa prevenção estruturante. Tem uma prevenção emergencial e uma prevenção estruturante. A prevenção emergencial, que precisa ser super eficaz e necessária, cada vez mais envolve a Defesa Civil, o Cemaden e um monte de organismos que lidam com essas informações. Eles dão um aviso. Ano passado no Taquari o aviso foi dado cinco dias antes. Se você considerar que foi feito o salvamento de cerca de 70 mil pessoas, por que essas pessoas foram salvas? Porque foi possível mobilizar recursos ainda em tempo de salvamento. Se você imaginar que outras tantas saíram dos lugares de super risco verá que o alerta, mesmo que ainda não seja o ideal, já está funcionando. Ele já salvou mais do que no ano passado. Qual é o preparo que precisa acontecer? Ao saber que você tem essa suscetibilidade com base nessa série histórica, eu já preparei aquele município, aquela região, aquela comunidade. Para onde eu vou quando eu der o aviso que pode acontecer? Vou para a paróquia? Vou para a igreja? Vou para o centro comunitário? Vou para aquela escola, aquela universidade? Qual é a rota para ir? Pelo que eu estou observando, vai ser uma precipitação muito grande. Ou seja, essas pessoas vão ficar uma quantidade de dias em abrigos, então tem que ter estrutura de abrigo. Vão precisar de comida, de água potável, de energia, de remédios, vão precisar de um hospital de campanha. Tudo isso faz parte do preparo emergencial, porque eu já sei qual é a rota de fuga.
Carlos Nobre fala justamente disso: educar a população também para saber como agir nesses momentos. E algumas cidades não podem permanecer em alguns lugares…
Marina Silva – Isso está dado como uma realidade porque se a cidade alaga praticamente todo ano… é feito um esforço, reconstrói-se, as pessoas voltam, mas no ano que vem a cidade alaga de novo, não tem nenhuma possibilidade. As pessoas já nem se sentem mais seguras. A gente tem que fazer esse esforço. Esse esforço é líquido e certo? Não, ele é com base no princípio da precaução. Em alguns lugares vai ser preciso dizer ‘aqui não’. O que aconteceu em Petrópolis naquela vez foi 250 milímetros de chuva. E eles tinham uma identificação de 500 milímetros numa outra região. Choveu primeiro em Petrópolis, 250 já matou aquele monte de gente. E ainda bem que os 500 caíram numa região que não tinha população. Mas eles não tinham como precisar com evidência onde vai cair 200 e onde vai cair 500. Certo? Então aqui é o princípio da precaução. É tão avassalador que eu não posso arriscar. E ninguém vai poder dizer ‘não, mas você fez um monte de intervenção, tirou as pessoas à toa e não aconteceu nada. Aconteceu aqui do lado, que nem tinha gente’. Eu não posso correr esse risco porque eu não vou ter uma ciência exata dizendo ‘vai chover aqui nesse ponto, vai chover nesta região’. De que forma vai se comportar essa água? Se é uma planície, a água vai se espalhando como se fosse num prato. Se é uma região encaixada, com montanhas, a água vem com a velocidade que arrasa tudo que está pela frente. Então, é o princípio da precaução.
Ministra, você avisou várias vezes. Ao longo dos anos você sempre disse que era preciso se preparar e pedia por um caminho que evitaria situações como esta no Rio Grande do Sul Como você se sente?
Marina Silva – A ciência avisou. A gente fez um acordo de 185 países em 92 com o acerto de ia ter que se voltar para evitar essas tragédias. Então esse ‘eu coletivo’ avisou. É claro que gostaria que o aviso tivesse sido ouvido. Tem quem avisou com conhecimento científico e técnico de causa. E tem quem vocalizou. Eu me considero uma vocalizadora. De um dado científico que foi disponibilizado para a humanidade, para os governos, para as empresas, para as pessoas, para os jornais, para todo mundo. Eu acho que tem um ‘eu coletivo’ que avisou com conhecimento técnico e científico de causa, tem um ‘eu coletivo’ que vocalizou, militou, trabalhou para fazer esse convencimento. O Tarso Genro escreveu uma metáfora sobre a Arca de Noé dizendo ‘precisamos construir a Arca, vamos entrar na Arca’. Mas mais uma vez esse apelo não foi, digamos assim, considerado e tem um outro ‘eu coletivo’ de diferentes maneiras que não se sentiu avisado, que não quis se sentir avisado e ou que não tinha como ser avisado, que é a maioria da população. Esse é um momento que eu prefiro muito mais ficar com a experiência dolorosa do aprendizado, e que ele possa ampliar cada vez mais para criar um lugar de conectividade entre esses dois espaços. E ao estarmos abertos para essa conectividade, tudo que eu tenho evitado é fazer a história do “eu te disse”, sabe? Porque eu acho que não é pedagógico, pode parecer presunçoso, pode criar distâncias. Na verdade, há uma contradição entre nós. A gente dá tanta credibilidade para o que a ciência diz que, se não fizer tais e tais procedimentos em relação ao câmbio, ao controle de inflação, isso é muito perigoso para a economia. E todo mundo cobra que se leve em conta o que a ciência econômica, que não é nem uma ciência exata, está dizendo. Agora, tem outras coisas que a ciência mostra matematicamente que estão acontecendo e não se consegue esse nível de convencimento.
O que fica de lição?
Marina Silva – Tem uma pergunta que a gente precisa se fazer. Por que será? Por que será que num determinado momento, quando a ciência fala, ela é científica, matemática? E em outro momento, quando ela fala outros tipos de informação ou dados, ela está sendo ideológica? Eu acho que esse aprendizado é que tem que surgir agora. Depois do dilúvio, o que pode vir. Qual é o pequeno raminho verde que virá no bico da pombinha [passagem do livro Gênesis 8]? Eu espero que venha um raminho verde de mais solidariedade, que venha um raminho verde de mais respeito à ciência, que possa vir um raminho verde de que nós temos que nos prevenir. Esse artigo que o Tarso Genro escreveu está muito interessante. E eu me senti motivada a escrever um texto pessoal pra ele. Porque a visão desenvolvimentista não era só de conservadores, era também de progressistas. Portanto, agora o nosso esforço é de, mesmo sendo progressista e conservador, o desafio sustentabilista, como era o desafio desenvolvimentista, tem que ser para todos. Ele só não vai ser para os negacionistas. Você vai continuar conservador, eu vou continuar ambientalista, você vai continuar com a sua visão ideológica. Agora, o que nós não podemos ser é negacionista. Porque o negacionismo terá um custo incalculável para a vida humana, para a fazenda humana e global, para a segurança e para aquilo que é de mais importante nas comunidades humanas, que é o fator esperança. Quando o fator esperança é abalado, em cima do que a gente constrói? E para muitas pessoas que eu visitei no abrigo no Rio Grande do Sul o olhar estava fixado no vazio. Quando a pessoa olha pro vazio, é muito difícil de reconstruir. Quem reconstruiu seu comércio pela segunda vez? Como é que está olhando que ele vai pegar o FGTS, o empréstimo do BNDES e um monte de coisas pra fazer pela terceira vez? Então é disso que nós estamos tratando. E como nós vamos nos prevenir? O Brasil já tem um prejuízo de 80 milhões de toneladas de grãos em função da mudança climática. Se a gente olhar a potência que o Brasil tem na produção de grãos, alguém pode dizer: ‘mas isso é residual’. Isso não é residual. Isso é um alerta real de que isso pode se intensificar e se agravar. O que nós vamos fazer com isso? A frase do Carlos Fávaro dita pra mim nesse cantinho da mesa uns 20 dias atrás, foi lapidar. No plano safra, no plano safra 0.2 para a agricultura de baixo carbono, ele falou: ‘A gente a vida toda acreditou que os nossos maiores ativos eram ter alta tecnologia em termos agrícolas, temos muita terra fértil, e termos pessoas vocacionadas para produzir alimento. E agora nós estamos descobrindo que o nosso maior ativo sempre foi o clima. Porque sem um clima equilibrado, o que nós vamos fazer com a nossa tecnologia? O que nós vamos fazer com a nossa terra? O que nós vamos fazer com a nossa vocação de produtores agrícolas?’ E eu achei isso muito forte. Se o nosso maior ativo é o clima, e se a Amazônia for destruída acima de 25%, se ela virar savana, ela não produz mais a chuva que nós precisamos. E nós vamos virar deserto. O que nós vamos fazer com a nossa tecnologia, com a nossa vocação, com a nossa grande quantidade de terra deserta?
Ministra, você não quis vocalizar “eu avisei”. Até pelo o que eu te conheço, imaginava que você não fosse afirmar isso, mas tem algum sentimento que daria para dizer sobre isso tudo no Rio Grande do Sul? Frustração ou algo que defina?
Marina Silva – Tem um sentimento assim de dor. Agora, na ida ao Rio Grande do Sul, visitando os abrigos, cada pessoa ali tinha um colchão ao lado do outro. E aquelas famílias em cima de um colchão. Algumas coisinhas ali, geralmente um colchão de casal, pai, filho, genro, neto, cachorro, tudo ali em redor daquele colchão. E a gente foi andando… eu ia cuidando das crianças porque era aquele monte de gente e elas eram muito pequenininhas e poderiam ser empurradas. Nunca me esqueço o nome de uma, uma criança negra, e uma outra, que não era negra. Eu não consegui escutar. Perguntei várias vezes o nome dela, mas o barulho, eu não entendi se era Taís ou se era Laís. Mas a outra eu entendi direitinho que era Poliana. Como o Plínio de Arruda Sampaio me chamava de Poliana na eleição de 2010, imediatamente eu guardei o nome. E até então eu achava que os pais estavam naquele conglomerado de gente. Aí o segurança do Lula falou assim, a gente já estava pra sair, ‘cuidado com essas crianças, porque elas podem se perder aqui’, porque eram vários abrigos, milhares de pessoas no ginásio. A gente estava mudando de um espaço para outro, naquelas quadras de esporte. E o segurança falou: ‘é que ela quer que o Lula vá onde está o pai dela. Ela quer levar o Lula onde está o pai dela’. E eu fiquei pensando: por que uma criança de 5, 6 anos fica ali querendo que o Lula vá aonde está o pai? O Lula tinha passado em vários e no contrafluxo, já na saída, era impossível voltar, até pela distância. É doloroso porque é uma criança que com certeza tinha alguma coisa na cabecinha dela de achar que, se o Lula fosse lá, ia ajudar o pai dela, ia devolver a casa dela. Você fica projetando isso. E é tudo muito doloroso, muito triste.
Por isso, a dor…
Marina Silva – Mas acho que o bom de estarmos falando sobre esse nosso luto, sobre essa nossa dor, é que se a gente fala sobre ela, a gente também consegue vislumbrar alguma cura. E essa cura com certeza vai estar dentro de nós. Como é que o nosso compromisso político se reflete agora, mostrando que de fato estamos comprometidos através de indicadores dos nossos esforços? Quais são os indicadores dos nossos esforços? Após várias visitas do presidente, de vários ministros, inclusive eu, do presidente da Câmara, do Senado, do Tribunal de Contas, do Supremo, quais são os indicadores dos nossos esforços? São novos marcos legais? São mais recursos financeiros? São planejamentos? Foi interessante também ver que está tendo um debate, inclusive uma comissão, que está discutindo colocar 5% das emendas impositivas para a reconstrução do Rio Grande do Sul e para ações de prevenção. Eu fiquei pensando, 5% de 33 bilhões vai dar algo em torno de 1 bilhão e meio. Imagine? Eu acho que já é um indicativo do nosso esforço. Como isso pode ser ampliado? Os prefeitos dizem… Mesmo que passe dinheiro pra mim, como eu não tenho espaço fiscal, não vou poder usar esse dinheiro. Fazer excepcionalidades para prevenir essas coisas, excepcionalidades fiscais. Se o Congresso entender isso, a sociedade entender isso, os que cobram corretamente que se tenha responsabilidade fiscal entenderem isso, já é um indicativo do nosso esforço. Abrir o espaço fiscal para esses programas de reconstrução, de preparação emergencial ou de adaptação para o enfrentamento mais preventivo.