Há alguns dias atrás, um grupo de ativistas antivacina protestava em Nova Iorque contra a exigência de vacinação para frequentar eventos nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que uma pesquisa aponta que menos de 1% das mortes por COVID-19 nos EUA em maio foram de pessoas não-vacinadas. No centro do debate, uma questão chave: os setores públicos ou privados podem limitar o acesso de quem deliberadamente não quer se vacinar? Há limites à liberdade individual?
A questão em voga é um debate dos mais antigos e ao mesmo tempo imensamente atual. Para tanto, é preciso retomar conceitos importantes. O primeiro deles é o direito inerente à liberdade individual.
A própria concepção do Estado moderno pressupõe sua existência não apenas para garantir a execução de políticas públicas à coletividade, mas assegurar a liberdade do indivíduo como sustentáculo da sua dignidade, inclusive protegendo-o de eventual tirania estatal. Ayn Rand certa vez ensinou que a menor minoria na Terra é o indivíduo, como forma de assegurar que toda individualidade deve ser protegida.
Nesse condão, não é razoável aceitar que, em um estado democrático de direito, governos obriguem os cidadãos a serem vacinados. O valor da liberdade garante ao indivíduo o direito a não aceitar tratamento médico ou transfusão de sangue, por exemplo, resguardada sua autodeterminação e exercício de liberdade religiosa.
Todavia, o valor da liberdade encontra limites. Nos casos de colisão entre princípios constitucionais, o direito fundamental da liberdade de um indivíduo pode ser limitado pelo exercício da liberdade de outras pessoas, seguindo a máxima de que a sua liberdade termina onde começa a do outro. Nesse sentido, um evento privado poderia limitar a entrada de pessoas não vacinadas por conveniência do organizador. Liberdade aliada à responsabilidade.
Ainda, há um segundo elemento fundamental para o debate. A limitação da liberdade individual encontra amparo no conceito de ética, isto é, no agir humano no mundo como parâmetro que orienta as decisões individuais visando o bem estar coletivo. Assim, o valor ético da coletividade (ou de inúmeras individualidades) tem o condão de limitar a liberdade de um indivíduo.
É exatamente o que acontece com a pandemia da COVID-19 no mundo inteiro. A negação da vacinação, por alguns, afeta a coletividade. Isso porque o coronavírus comporta-se como uma doença de fácil transmissão, mesmo por pessoas assintomáticas, e que gera forte pressão sobre equipamentos de saúde pública. Em tempos extremos, a limitação da liberdade individual protege a coletividade.
Aqui, inverte-se o primeiro argumento: o Estado não somente é garantidor das liberdades individuais, mas protetor do bem estar coletivo. Para tanto, a Constituição preconiza um princípio interessante: a supremacia do interesse público sobre o particular. De acordo com esse valor constitucional, o Estado pode, por exemplo, desapropriar um terreno para a construção de uma via, independentemente da autorização do proprietário, cabendo apenas o justo processo indenizatório, por entender predominante o interesse coletivo.
De acordo com o princípio da supremacia do interesse público, justifica-se a imposição de medidas restritivas contra quem não quer ser vacinado, seja na organização de eventos públicos como quanto no seu papel regulador da atividade privada.
Embora baseada no princípio da ética – ou do bem estar da coletividade – algumas medidas de segregação trazem consigo outros dilemas éticos, como quanto à divisão do mundo entre vacinados e não-vacinados. Em tempos de escassez de vacinas, boa parte dos imunizantes ainda é maciçamente distribuída a países ricos, de modo que tal segregação garantiria direitos especiais a grupos privilegiados e, assim, aumentaria o abismo social e econômico.
O atual debate sobre segregação entre vacinados e não-vacinados ganha especial força no mundo no momento em a União Europeia, além de países como Israel, acaba de adotar o passaporte de vacinação, mesmo sob protestos de quem sustenta o prejuízo da limitação da liberdade de ir e vir e do exercício profissional.
Ao leitor, cabe a reflexão: em tempos extremos como os atuais, justifica-se a limitação da liberdade individual visando a proteção da saúde pública e a vida de pessoas ainda não vacinadas a partir de uma chave de leitura ética? Ou tal imposição apresenta-se como pura e simples discriminação e tirania por parte do Estado?
Daniel Lança é advogado, Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e sócio da SG Compliance. É Professor convidado da Fundação Dom Cabral (FDC) e foi um dos especialistas a escrever as Novas Medidas contra a Corrupção (FGV/Transparência Internacional)