A eletroconvulsoterapia (ECT), antigamente conhecida como eletrochoque, é um tratamento clínico psiquiátrico que envolve a indução de uma crise convulsiva por meio de uma corrente elétrica. Embora outras formas de produção de convulsão tenham sido usadas no passado, em 1938 os neuropsiquiatras italianos Ugo Cerletti e Lucio Bini consolidaram a ideia de usar a eletricidade para estimular uma convulsão no tratamento de condições psiquiátricas.
A ECT foi usada inicialmente em quadros graves de esquizofrenia, sendo que mais tarde se mostrou extremamente útil no tratamento de transtornos afetivos, em especial na depressão. Porém, apesar de ser o tratamento biológico mais eficaz no tratamento da depressão, limitado ao uso em casos refratários aos medicamentos, com reconhecida segurança (ver abaixo), o seu uso na psiquiatria moderna permanece relativamente restrito, por diversas causas. A maioria pouco nobres.
Eletroconvulsoterapia e arte: baseado em fatos reais ou obra de ficção?
No imaginário popular, ECT é classicamente associada a tortura, dor e como uma forma desumana de castigo e punição. Esta perspectiva, em grande parte, foi moldada ao longo dos anos por meio de filmes, que provavelmente ajudaram a formar as opiniões de milhões de espectadores em relação a este procedimento.
Um recente artigo que revisou as cenas de ECT apresentadas em filmes e séries de TV desde 1948, concluiu que este procedimento é quase que unicamente retratado como uma metáfora para repressão, controle da mente e do comportamento e sem nenhum benefício terapêutico.
Como Edward Shorter proferiu: “a ECT se presta a uma belíssima dramatização cinematográfica”. De fato, se o personagem R.P. McMurphy de Um Estranho no Ninho (Miloš Forman, One Flew Over the Cuckoo’s Nest, 1975) não tivesse recebido a ECT apresentada daquela forma – desumana, abusiva e sem anestesia – talvez Jack Nicholson não recebesse o Oscar de melhor ator e o filme não teria o mesmo sucesso. O impacto da cena retratada obviamente só aprofundou o estigma associado a ECT.
Diferentemente do apresentado neste e em outros filmes, o uso da moderna ECT envolve:
- (i) uma avaliação clínica prévia muito cuidadosa (incluindo diversos exames clínicos, de imagem e laboratoriais);
- (ii) indução anestésica (não, ECT não doi!);
- (iii) uso de relaxantes musculares para garantir que a crise seja leve e,
- (iv) um período de recuperação pós-anestésico.
O tratamento pode ocorrer em um hospital ou instituição psiquiátrica em regime de internação integral ou ainda em nível ambulatorial, dependendo da gravidade. É necessário o consentimento por escrito do paciente (eventualmente também dos familiares) para a sua realização. Envolve de duas a três sessões semanais (em um total de seis a 12), ao longo de duas a quatro semanas.
O principal efeito adverso que pode ocorrer durante o período de tratamento da ECT, é o prejuízo da memória, eventualmente com duração de alguns meses em alguns poucos pacientes. Por este motivo, a ECT é reservada como última opção, particularmente em pacientes com “depressão resistentes ao tratamento” ou em casos mais graves com sintomas psicóticos e/ou ideação suicida.
Entretanto, diferentemente do que se imagina, a ECT não causa nenhum dano cerebral, não “queima neurônio” e, na verdade, pode prevenir alterações no funcionamento e estrutura do cérebro sabidamente causadas pelo curso crônico da depressão.
O que você prefere: tomar um eletrochoque ou uma aspirina?
Ainda em termos de segurança, a ECT apresenta risco de mortalidade muitíssimo baixo (entre uma e quatro mortes por 100.000 tratamentos), ou seja, o mesmo risco de se submeter a anestesia. Para fins de comparação, a literatura demonstra que tomar uma aspirina por dia para prevenir doenças cardiovasculares representa um risco de 10,4 mortes por 100.000 ao ano em homens de meia idade. Ou seja, o uso crônico deste analgésico, é quase tão perigoso, embora muitíssimo baixo, quanto dirigir um carro ou trabalhar como bombeiro.
Também cabe lembrar que a taxa de suicídio no Brasil é maior que o risco da ECT, de seis por 100.000 habitantes (entre pacientes com depressão, obviamente esta taxa é ainda mais elevada). Então, acredite, a ECT atualmente é um procedimento muito seguro.
O eletrochoque é o método mais eficaz de tratamento da depressão e salva vidas
A Organização Mundial de Saúde classifica a depressão entre as doenças mais debilitantes para a sociedade, com redução na qualidade de vida e enormes custos individuais e sociais. De modo particular para o subgrupo de pacientes com “depressão resistente ao tratamento” (aqueles que deveriam receber a ECT), os efeitos são ainda mais graves, com perda da qualidade de vida, incapacidade para o trabalho, presença de comorbidades clínicas e psiquiátrica e o aspecto mais assustador, – taxas muito maiores de suicídio.
Mais do que 80% dos pacientes com depressão remitem completamente do quadro com o uso da ECT (nenhum medicamento ou psicoterapia chega nem perto disto). Entretanto, o que mais impressiona é que a ECT melhora até 60% dos pacientes que NÃO responderam ao uso de vários medicamentos (combinados ou isoladamente) ou a psicoterapia.
Dessa forma, considerando que a prevalência de depressão ao longo da vida no Brasil é de cerca de 17% (ou 35 milhões de pessoas) e que 30% desses casos não respondem a quatro ou mais tentativas farmacológicas adequadas, teríamos o gigantesco número de 10,5 milhões de pacientes que necessitariam fazer ECT.
Assim, mesmo usando taxas conservadoras, considerando a resposta nesta população (60%), cerca de 6 milhões de pessoas com depressão crônica, grave e debilitante – taxas compatíveis com as relatadas mundialmente – poderiam estar vivendo uma vida próxima ao normal com o uso do ECT.
O eletrochoque, ideologia e as políticas de saúde pública no Brasil
Hoje já é consenso que a assistência não pode ser centrada nos antigos manicômios. Porém é imprescindível termos à disposição modernos e adequados tratamentos psiquiátricos. Assim, em termos de política de saúde pública poderíamos imaginar que o procedimento mais eficaz no tratamento de uma das doenças mais prevalentes e impactantes como a depressão deveria ser prioritária, especialmente no Sistema Único de Saúde (SUS). Mas não, aqui o que ocorre é justamente o contrário.
A psiquiatria vigente no SUS tem uma forte influência do auto-denominado “Movimento da Luta Anti-manicomial” (inspirado no movimento italiano La Lotta Antimanicomiale), também com viés ideológico e que nega a psiquiatria de modo geral. A Lei Paulo Delgado (2001/10.216) consolidou o redirecionamento de recursos do SUS e neste contexto, não remunera os hospitais pela realização da ECT. E vai além….para pior! As regras do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares (PNASH) premiam os serviços psiquiátricos que NÃO realizam a ECT. Ou seja, os serviços que fazem este procedimento no SUS, além de não serem remunerados, são penalizados. Uma distorção!
Qual o impacto desta política pública vigente sobre o uso da ECT no Brasil?
Basicamente, a disponibilidade desta moderna terapêutica é nula fora de grandes metrópoles ou centros universitários mais especializados. Mais da metade dos estados do Brasil não possui serviços de ECT, seja privado ou público. Assim, o resultado desta política é que milhões de pessoas que teriam a chance de estar bem, estão desassistidas e não tem acesso ao tratamento mais eficaz. Isto é especialmente mais impactante para os mais pobres, cujo acesso a informação ao sistema de saúde é limitado e não possuem recursos financeiros para obter um tratamento de ECT privado.
O modelo de assistência psiquiátrica deveria estar distante de vieses ideológicos, do corporativismo e de discursos obtusos, genéricos, sem respaldo científico e bem longe de contaminações do senso comum e do imaginário que influenciou toda uma cultura urbana. Mas a cegueira vigente não permite observar que a ECT, um outrora outsider, hoje é o mainstream da moderna terapêutica psiquiátrica.
Dessa forma, a consequência é que milhões vão continuar sofrendo e muitos morrendo como resultado da política de saúde mental no país. É chocante, com o perdão do jogo de palavras, mas a solução está logo ali….
* Agradeço ao Prof. Dr. André Russowsky Brunoni, do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, por várias informações essenciais para elaboração deste texto.
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