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Depois das urnas

Não vai ser fácil governar com o legado da eleição pela rejeição

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h18 - Publicado em 3 set 2022, 12h04
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  • Lula e Jair Bolsonaro concentram mais de 70% das intenções de voto. No entanto, eles são rejeitados por mais de 80% dos eleitores. Esse é o retrato do Brasil a um mês da eleição presidencial, informam as últimas pesquisas do Ipec e do Datafolha.

    O ressentimento esparramado na campanha não vai acabar nas urnas — memória de ressentido é digestão que não termina, já explicou o filósofo Friedrich Nietzsche. As consequências devem ir muito além de outubro.

    O novo governo, qualquer que seja, estará condicionado pelo legado desse divisionismo sedimentado nas sondagens eleitorais dos últimos doze meses. Por vaidade ou conveniência, os líderes nas pesquisas condimentam esse clima com múltiplos enigmas sobre o que pretendem fazer caso sejam eleitos.

    Viciado em si mesmo, Lula se recusa a “assumir compromissos”, como disse no debate. Atravessa a campanha evocando um bordão de tevê do Brasil de três décadas atrás, quando virou candidato profissional à Presidência da República: a garantia sou eu (“La garantía soy yo”, no original do publicitário Paulo Bione, nos anos 90). Para o futuro, promete o passado.

    Bolsonaro elegeu-se em 2018 com a promessa de acabar com a reeleição. No dia seguinte à posse já batalhava por um novo mandato. Messiânico, apresenta-se como líder devotado à mudança da ordem institucional. Acena com “a continuidade”, mais do mesmo tumulto político, na tentativa de impor à sociedade um aquartelamento no fundamentalismo bíblico, com semeadura de armas e de reacionarismo nos costumes, tudo emoldurado em contraditória retórica liberal.

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    O horizonte está turvo, e não se fala sobre ele. Há uma crise global agravada pelas sequelas de uma pandemia, de uma guerra e de eventos climáticos sem precedentes, mas não se escuta palavra a respeito. Líderes europeus, como o francês Emmanuel Macron, têm frequentado as telas de tevê para lembrar o povo de que “vai precisar da força da alma para enfrentar os tempos que virão”. Aqui, porém, vende-se um país blindado, como se o crescimento econômico, por exemplo, dependesse de uma só canetada presidencial.

    “Não vai ser fácil governar com o legado da eleição pela rejeição”

    A blindagem construída no Brasil é a de resguardo do atraso. Depois de dois séculos de Independência, de cada 100 eleitores que vão às urnas, quarenta dependem de ajuda do governo para sobreviver. No mapa demográfico, isso corresponde a 40% da população. Na cabine de votação representa mais da metade (55%) do total de votantes.

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    A quatro semanas da eleição, os líderes nas pesquisas mantêm mistério sobre o que planejam fazer para resgatar a maioria desses pobres — mulheres, mães, chefes de família na periferia, atormentadas com a escassez de comida na mesa, a educação dos filhos e a saúde da família.

    Lula e Bolsonaro são enfáticos no anúncio da recuperação dos salários, dos empregos e dos investimentos públicos, mas não explicam de onde pretendem extrair o dinheiro necessário ao financiamento. O espaço de manobra no Orçamento é o menor já visto para um presidente: 93% dos recursos federais têm destino definido e, da fatia restante, um quarto foi apropriado pelo Congresso como símbolo da soberania legislativa.

    A eleição pela rejeição penhora o futuro. Agrava-se no vazio de ideias e propostas num ambiente de divisão inflamado pela retórica que, na definição do ex-presidente José Sarney, “condena uns à perdição e outros à salvação”. Não há voz mais experiente na praça: ele está completando 69 anos na política. Já viveu sob quatro constituições (as de 1946, 1967, 1969 e a atual, produto da sua convocação em 1988); atravessou catorze governos — seis na ditadura —, numa trapaça do destino teve o próprio, que conduziu a redemocratização do país; e, ainda, integrou treze legislaturas.

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    Aos 92 anos, Sarney está preocupado com o futuro. “Esse problema da divisão do país será uma herança amarga, e o futuro presidente terá como uma das tarefas principais conjurar o possível gérmen da desintegração” — escreveu nesta semana. “A democracia não se aprofundou depois da redemocratização. Avançou um corporativismo anárquico que foi beneficiando ilhas de interesses, gerando essa divisão que aflora nas eleições. O sistema político terá de ser reformado ou recriado. Não será fácil. Enfrentará resistências de aliados e contrários.”

    Por sorte, há um longo histórico de confiança básica dos brasileiros na construção do futuro, apesar dos governos que insistem em manter o Brasil sob o status de mais antigo país do futuro.

    Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

    Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805

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