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Jorge Pontes

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Jorge Pontes foi delegado da Polícia Federal e é formado pela FBI National Academy. Foi membro eleito do Comitê Executivo da Interpol em Lyon, França, e é co-autor do livro Crime.Gov - Quando Corrupção e Governo se Misturam.
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Autorregulação do ouro: receita para um fracasso

Substituir a regulação estatal pela privada é como deixar a raposa tomando conta do galinheiro

Por Jorge Pontes
Atualizado em 9 Maio 2024, 20h09 - Publicado em 12 nov 2023, 11h32

Um olhar para a Amazônia revela uma visão de passado, presente e futuro do próprio país. Um caso emblemático é o comércio ilegal de ouro no Brasil, que vem, nas últimas cinco décadas, promovendo uma extração intensiva, desordenada e extremamente danosa ao meio ambiente, e, consequentemente, aos interesses da própria sociedade brasileira.

Na década de 1980, Serra Pelada exigiu a presença do Estado, ocasião em que foi definida a compra exclusiva do ouro pela Caixa Econômica Federal, que também se encarregava do transporte do metal precioso, invariavelmente escoltada por agentes da Polícia Federal. Era o Estado presente e ativo, zelando pela legalidade e correção de parte relevante do processo.

Nos anos subsequentes, a exclusividade do Estado na compra de ouro mostrou-se inviável em outras regiões brasileiras, como em Itaituba, no Pará.

Atualmente, o ouro oriundo de garimpos deve ser comprado exclusivamente pelas Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários, as DTVMs, que são instituições financeiras autorizadas pelo Banco Central para atuar na intermediação de títulos e valores mobiliários, nos mercados financeiros e de capitais. E as DTVMs realizam compra de ouro como ativo financeiro.

O ouro produzido de mineradoras pode também ser comercializado como mercadoria e vendido diretamente para o mercado interno ou exportado. Mas ambos os fluxos estão sujeitos ao descaminho e são utilizados como instrumentos de capitalização do crime organizado.

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Nesse contexto, temos de considerar que grande parte das atividades de mineração de ouro encontra-se em regiões da Amazônia, onde o poder público vem perdendo enorme terreno para a criminalidade, dando origem a um verdadeiro faroeste, isto é, áreas de ocorrência do que se convencionou chamar de “narcodesmatamento”. Trata-se de um território onde o tráfico de drogas e a pistolagem promoveram uma joint venture com crimes ambientais como extração de madeira e garimpo ilegais – tudo devidamente chancelado pela delinquência política institucionalizada. É o crime organizado em conjunção carnal com o crime organizante.

Diante de ações efetivas da Polícia Federal e da Receita Federal, várias iniciativas foram realizadas pelas DTVMs na tentativa de mostrar a rastreabilidade da cadeia produtiva na qual estão inseridas. Por outro lado, as empresas, diante de exigências de uma mineração responsável, bem como para garantir a própria segurança patrimonial, também utilizaram-se de mecanismos de rastreio ou certificação.

Um ponto em comum é que, apesar dos esforços, o descaminho do ouro só fez aumentar, reforçando que pouco adiantaram as ações dos próprios agentes do mercado, sejam eles produtores ou compradores.

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Nesse modelo de autorregulação, a regulação pública é substituída pela privada, exercida por terceiros ou, até mesmo, por associações (também privadas), e está baseada na adesão e conformidade consensuais do agente privado.

Esse mecanismo contraria frontalmente o pensamento majoritário de que a regulação seria uma atividade tipicamente estatal, na qual o Estado intervém indiretamente nas atividades econômicas a fim de evitar malfeitos, corrigir eventuais falhas de mercado e garantir o interesse público – que deve permear a exploração dessa relevante atividade econômica.

No entanto, na autorregulação prevalecem os interesses privados dos atores envolvidos e, somente em segundo plano, os interesses difusos da sociedade.

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Apesar de uma parte da doutrina do Direito Regulatório entender que a autorregulação pode ser uma forma de descentralizar a regulação e, por conseguinte, aproximar, de forma mais eficiente, o regulador privado do regulado, a autorregulação possui pontos negativos que precisam ser levados em consideração antes de serem utilizados ou reconhecidos pelo Estado como um instrumento eficaz.

A escolha de um determinado processo em temas que guardam transversalidade com áreas sensíveis como segurança pública, justiça, meio ambiente e saúde deve sempre considerar a possibilidade da ocorrência de impactos e efeitos colaterais danosos.

A prevalência dos interesses privados pode acarretar falhas de mercados, desconformidades com as máximas de proteção ao meio ambiente e à dignidade humana, além de causar dificuldades em relação à transparência e à prestação de contas. Há, também, um considerável aumento da superfície relativa para a ocorrência de lavagem de dinheiro. São consequências desastrosas que devem ser sopesadas.

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Ou seja, a raposa definitivamente não pode ser encarregada de cuidar do galinheiro.

Merecem reconhecimento os esforços que o Estado brasileiro já vem realizando, em boas iniciativas como o Projeto Ouro Alvo, da Polícia Federal, que tem como objetivo o mapeamento do perfil do minério com base em análise em nível molecular, determinando o que seria o “DNA do ouro”, isto é, identificando a procedência do metal. Nesse programa, conduzido por peritos criminais federais, está prevista a criação e alimentação de uma ouroteca, que funcionará como “base de padrões e amostras” para identificação do ouro nos inquéritos policiais conduzidos pela PF. A palavra chave nessa empreitada é rastreabilidade.

Mas tudo isso pode ir por terra com a vulnerabilidade representada pela adoção de modelos de autorregulação para o business do ouro.

Assim, o melhor caminho é reforçar o papel dos agentes de mercado, como produtores ou compradores, mas sob regras de Estado, no que se refere à rastreabilidade da cadeia de produção do metal precioso, que deve ser exercida por um ente forte, de Estado, capaz de garantir o interesse social em primeiro lugar e conferir a credibilidade que a sociedade espera. Estado enxuto é uma coisa, estado omisso e ausente é outra bem diferente.

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