Há pouco mais de uma semana, o ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino e o alemão Jurgen Stock, secretário-geral da Interpol, comemoraram – numa cerimônia ocorrida no Palácio da Justiça, em Brasília – o aniversário de 100 anos de criação dessa importante entidade multilateral de cooperação em matéria criminal: a Interpol.
Foi no ano de 1923, em Viena, Áustria, que foi criada a Comissão Internacional de Polícia Criminal – CIPC, embrião da organização que ficou posteriormente conhecida como Interpol, ou melhor, Organização Internacional de Polícia Criminal – OIPC. Era um período, como o atual, de disrupções globais, com profundas tensões políticas e econômicas.
Objeto de enredos de filmes e romances policiais – e de um imaginário popular planetário – a Interpol teve sua criação inicialmente motivada pela necessidade das polícias européias, do pós-guerra (Primeira Guerra Mundial), buscarem seus criminosos fora de seus territórios. Dessa forma, localizar, prender e extraditar fugitivos – delinquentes – internacionais foi a primeira necessidade das polícias de um século que ainda iria assistir, setenta anos mais tarde, o fenômeno da globalização.
Enfim, muito antes dos crimes se tornarem maciçamente transnacionais, a Interpol já se projetava como ferramenta a serviço de um ideal de Justiça Global. E de lá pra cá, as ferramentas se desenvolveram dramaticamente – do telégrafo ao I-24/7 (seu sistema exclusivo de mensageria eletrônica); das impressões digitais ao reconhecimento facial.
Com seu quartel-general em Lyon, na França, uma sede asiática em Singapura (que se encarrega prioritariamente de inovações e cibercrime), e escritórios sub-regionais na Argentina, El Salvador, Camarões, Costa do Marfim, Quênia e Zimbábue (que funcionam como hubs de apoio para as respectivas regiões), a OIPC é considerada a maior organização policial da Terra. Hoje fazem parte de suas fileiras as polícias de 195 nações – há um Escritório Central Nacional (ECN) da Interpol, em cada um desses 195 países. Somente a Organização das Nações Unidas, a ONU, tem mais membros do que a OIPC.
A Interpol, desde sempre utilizando-se do estado da arte em tecnologia de telecomunicação segura e exclusiva, encurtou a distância entre as agências de investigação do Planeta, fazendo da cooperação policial uma das mais eficazes ferramentas para o enfrentamento ao crime organizado transnacional. A instituição também fornece suporte de investigação, conhecimento e treinamento para a comunidade policial internacional na luta contra três áreas principais de delitos transnacionais: terrorismo, crime cibernético e crime organizado.
Seu trabalho alcança praticamente todos os tipos de malfeitos, incluindo crimes contra a humanidade, pornografia infantil, tráfico de drogas, tráfico de espécies ameaçadas, corrupção política, violação de direitos autorais e crimes do colarinho branco. A Interpol também ajuda a coordenar a cooperação entre as instituições policiais do mundo, por meio de seus atualizados bancos de dados criminais.
A OIPC é proibida – por força de sua constituição – de se envolver em questões políticas, militares, religiosas e raciais. A neutralidade, a técnica e o profissionalismo são pilares da sua atuação. A organização – como diz seu atual Secretário Geral, Jurgen Stock – lança mão de uma “diplomacia policial”, que significa o reconhecimento de que a cooperação policial pode e deve transcender fronteiras e divisões geopolíticas.
O Brasil faz parte da organização desde 1956, e é a Polícia Federal que se encarrega do seu Escritório Central Nacional e das suas atividades em nosso território. Até hoje apenas cinco policiais brasileiros fizeram parte do Comitê Executivo da Interpol, cargo preenchido em eleição que ocorre nas Assembléias Gerais da instituição.
Nessa virada para o seu segundo século de existência, a Interpol tem pela frente desafios complexos e inúmeras ameaças impostas pelo surgimento de novas morfologias delituosas. As revoluções tecnológicas e sociais que vivenciamos fazem nascer, constantemente, novas ondas e novos espaços para a criminalidade. E, infelizmente, o crime sai na frente e anda mais rápido que os aparelhos repressores.
A boa notícia é que o delegado Valdecy Urquiza, atual diretor de Cooperação Internacional da PF (e que também é vice-presidente das Américas na Interpol) acaba de ser lançado oficialmente – pelo governo brasileiro – como candidato a secretário-geral da OIPC, cargo máximo da instituição, que até então foi exclusivamente ocupado por europeus e norte-americanos.
Com um período de serviços prestados em Lyon e com uma carreira repleta de boas experiências práticas, e uma sólida formação acadêmica, Urquiza é um nome perfeito para o posto, mormente num mundo em que a diversidade pede passagem. De uma geração de delegados mais jovens, que decifram os cibercrimes e se sensibilizam com a delinquência ambiental, ele tem tudo para conduzir muito bem a organização.
E os desafios que nos esperam não serão nada simples. Doravante, com a delinquência ambiental como um dos principais flagelos da nossa época, os crimes, além de transnacionais, terão um componente ainda mais gravoso. Já é vislumbrada – como bem coloca o professor alemão Christoph Burchard, da Goethe University de Frankfurt, Alemanha – a figura nefasta do “planetary crime”, o delito planetário, não mais no sentido de um crime cuja cadeia de perpetração simplesmente ocorre em diversos países (como uma simples conexão de tráfico de drogas), mas do crime cujo impacto, cujas consequências, podem ocorrer e serem sentidas planetariamente, em prejuízo da humanidade como um todo, como a provocação de cataclismas ambientais, difusão de vírus, de epidemias, etc.
Como podemos observar, já passamos pela fase dos crimes de “lesa pátria”, e agora caminhamos a passos largos para os delitos de “lesa mundo”.