Acho que se pode dizer com segurança que o cinema do diretor grego Yorgos Lanthimos não é para todos os gostos. A questão é, seria ele para o seu gosto em particular? Não há como saber: os filmes de Lanthimos têm um sabor tão estranho que, sem provar deles, não há como saber se agradam a este ou àquele paladar. Tome-se por exemplo o penúltimo filme dele, O Lagosta, que foi lançado há dois anos e ganhou uma popularidade bem maior do que se esperava. Colin Farrell faz um sujeito que acabou de ser deixado pela mulher. Tem então de se hospedar num hotel para pessoas à procura de parceiros. Se não fechar negócio com uma nova pretendente no prazo de três meses, será transformado no animal de sua escolha (ele escolhe uma lagosta; o mais comum é que se escolham cães, gatos ou cavalos, claro). Na mata nos arredores do hotel, vive um grupo de foragidos da lei do casamento compulsório. Todo dia, os hóspedes saem para caçar. Se capturam uma dessas pessoas sem parceiros, ganham mais um dia de prazo antes de serem transformados. Colin Farrell se junta ao grupo de rebeldes, e aí surge outro problema: ele se apaixona pela também solitária Rachel Weisz, mas não pode nem flertar com ela, ou sofrerá punições severas. Não só a história é estranha. Lanthimos – que filma insanamente bem – gosta de planos rigorosamente compostos, de atuações sem inflexão, de diálogos escritos para jamais parecerem naturais e de um humor que nunca se reconhece cômico. Pus o pé na água com uma certa hesitação, mas gostei e saí nadando nela.
O Sacrifício do Cervo Sagrado, que acaba de entrar em cartaz aqui, é igualmente esquisito, e ainda mais bacana. Colin Farrell de novo é o protagonista – Steven, um cardiocirurgião de Cincinnati, Ohio, que dois ou três anos antes perdeu um paciente na mesa de operação. Talvez tenha sido culpa dele, talvez não. Mas, desde então, Steven parou de beber e começou a se encontrar com regularidade com o filho do paciente morto. Eles vão a uma lanchonete, têm conversas que soam meio fora de esquadro, e às vezes passeiam de carro. Martin (Barry Keoghan) parece adorar Steven. Reclama quando ele falta a um encontro e vai procurá-lo no hospital. Fica felicíssimo com o relógio que Steven lhe dá de presente, e parece encantado por ter sido convidado para jantar na casa do cirurgião, com sua mulher (Nicole Kidman), sua filha adolescente e seu filho caçula. Encantado demais – pegajoso, até. Eis, porém, que o filho de Steven certo dia acorda sem conseguir mexer as pernas. A paralisia avança, e nenhuma explicação para ela é encontrada. Aí é a vez de a filha perder os movimentos. As duas crianças param de comer e respiram com dificuldade. Nessa altura, Martin já revelou algo terrível a Steven.
O filme é uma releitura da tragédia grega Ifigênia. No texto escrito por Eurípides cerca de 2.400 anos atrás, o rei Agamêmnon mata um cervo sagrado numa caçada e assim incorre na ira da deusa Ártemis, que exige dele um sacrifício: ele deve matar a filha Ifigênia, ou os ventos não deixarão os navios do rei zarpar para fazer guerra em Tróia. Para Agamêmnon, tratava-se sim de uma escolha dificílima, quase impossível. Lanthimos atualiza o dilema (a primeira cena, de um coração pulsando numa cirurgia, indica de maneira bem literal que Steven toma vidas alheias nas suas mãos – mais do que gostaria ou se sentiria preparado para fazer, inclusive). Sobretudo, o diretor renova os fundamentos do texto de Eurípides – à sua maneira profundamente incômoda, e também fascinante.
Um recado: se gostar de O Lagosta ou de O Sacrifício do Cervo Sagrado, procure ver também Dente Canino (Dogtooth), que Lanthimos fez em 2009, ainda na Grécia, sobre três adolescentes que os pais mantêm confinados numa casa no campo, dizendo que só quando perderem o dente canino eles poderão sair para o mundo.
Trailer
O SACRIFÍCIO DO CERVO SAGRADO (The Killing of a Sacred Deer) Inglaterra/Irlanda/Estados Unidos, 2017 Direção: Yorgos Lanthimos Com Colin Farrell, Nicole Kidman, Barry Keoghan, Raffey Cassidy, Sunny Suljic, Bill Camp Distribuição: Diamond |