De jaqueta branca, no meio do deserto branco e inundado de luz, T.E. Lawrence (Peter O’Toole) olha o poço seco; logo vai morrer de sede. Deve ser miragem então aquele pontinho preto lá longe, no ponto de fuga do quadro – mas ele vagarosamente cresce e adquire alguma forma entre as ondas de calor que a imensidão irradia. O inglês David Lean, um dos mais magistrais cineastas de toda a história do cinema, espera sem pressa junto com Lawrence, a câmera fixa, até que a figura ganhe nitidez e por fim se revele. É o destino que vem chegando: Sherif Ali (Omar Sharif), o príncipe beduíno que será conquistado pela coragem e lealdade de Lawrence, a quem dará uma adaga e as vestes tradicionais (brancas, em contraste com as suas, negras) em sinal de que agora o considera um dos seus. Faz tempo que perdi a conta de quantas vezes essa cena já foi citada por outros diretores; a mais recente delas foi em julho deste ano, na versão live action de O Rei Leão (é o javali Pumba que tem a honra de pegar o lugar de Sherif Ali). Mas tudo, absolutamente tudo em Lawrence da Arábia é perfeito – e grandioso, e eletrizante. Mais: tudo o que se vê na tela é real e palpável, e foi registrado à custa de uma obstinação sem paralelo. Em 1962, evidentemente, efeitos digitais não existiam nem nos devaneios mais loucos. Ainda que existissem, David Lean não os usaria: obcecado pela autenticidade, ele fazia seus atores montarem seus camelos para cavalgar sob o sol escorchante mesmo nas tomadas mais distantes, em que mal se distinguia a fila da caravana entre as dunas. Steven Spielberg, que não é de ter medo de empreitadas difíceis, estima que hoje não haveria orçamento capaz de dar conta de um trabalho como esse – nem diretores com tenacidade suficiente para enfrentá-lo. Lawrence é, em todos os sentidos, único.
Os detalhes são tantos e tão nítidos que tentar apreendê-los todos é atordoante: até os grãos da areia são visíveis, assim como os microscópicos fragmentos de mica brilhando entre eles; a poeira está tão entranhada no uniforme de Peter O’Toole que é possível sentir entre os dedos a maneira como ela altera a textura do tecido; quando a câmera passa pelo rosto dele, o azul líquido dos seus olhos é de uma coincidência preternatural com o azul do céu, e de um contraste feroz com os efeitos da secura e do calor em seu rosto; e, graças ao ar cristalino do deserto, à luz que banha tudo e à perícia monstruosa do diretor de fotografia Freddie Young, consegue-se divisar cada pormenor da paisagem para trás de O’Toole, das reentrâncias das rochas que afloram a distância até a linha incerta do horizonte. Lawrence da Arábia foi sempre de tirar o fôlego, e há 57 anos vem estarrecendo espectadores. Mas, durante décadas, o filme sofreu toda espécie de mutilação por parte de exibidores inconformados com seus 228 minutos de duração, que reduziam pela metade o número de sessões do dia. Em 1989, essa injustiça começou a ser corrigida: naquele ano, Lawrence da Arábia foi objeto de uma longa restauração, a qual não apenas restituiu ao filme sua montagem original de quase quatro horas como também eliminou muito do dano acarretado ao negativo pelo tempo e pelo mau uso. Muito, porém, não é tudo – nem de longe. A obra-prima de Lean foi submetida a um novo e ainda mais minucioso processo digital de reconstituição no começo desta década, até ressurgir ainda mais gloriosa. Minha recomendação: veja no maior televisor possível, com som de home theater e em sala totalmente escura. E sugiro também preparar-se para o fato de que nunca mais outro filme lhe parecerá tão grandioso: das atuações antológicas e roteiro lapidar à majestade técnica, Lawrence é o ápice do casamento entre forma e conteúdo no cinema.
Rodado com as mastodônticas câmeras Panavision 65 mm no Marrocos e na Jordânia, sob temperaturas que às vezes superavam os 50 graus e chamuscavam tanto o negativo quanto o humor da equipe, Lawrence já nasceu primoroso, graças ao perfeccionismo irredutível de Lean. Uma operação exemplar, portanto, foi organizada para fazer jus a tal matéria-prima. Durante seis meses de 2010, o negativo restaurado em 1989 foi escaneado, quadro por quadro, no formato 4K. No correr do ano seguinte, cada um dos quadros digitalizados foi limpo e corrigido individualmente no computador: riscos, manchas, áreas deterioradas – tudo se recuperou e se retocou, até sobrar apenas a beleza das imagens. Por isso agora é possível observar cada fio do bigode que Omar Sharif nunca mais deixaria de usar, e também distinguir os movimentos de cada camelo nas panorâmicas imensas de que Lean tanto gostava. Ou melhor, não só por isso. É a tecnologia digital que permite devolver esses detalhes à luz. Mas é por causa da incomparável capacidade da película de captar texturas e nuances, sombras e luz, que esses detalhes estão lá para ser reencontrados.
Trailer
LAWRENCE DA ARÁBIA (Lawrence of Arabia) Inglaterra, 1962 Direção: David Lean Com Peter O’Toole, Alec Guinness, Omar Sharif, Anthony Quinn, Jack Hawkins, José Ferrer, Claude Rains, Arhtur Kennedy, Anthony Quayle Onde assistir: iTunes Store |