Em 2006, com a publicação do livro-reportagem Gomorra, o jornalista italiano Roberto Saviano, então com 27 anos, decretou para si mesmo uma vida impossível: sempre escondido, sempre mudando de endereço e sob proteção policial 24 horas por dia, na tentativa de escapar ao juramento de morte que clãs da organização criminosa Camorra mantêm sobre sua cabeça. Transformada em um filme excepcional (e aterrador) pelo diretor Matteo Garrone dois anos depois, a alentada e meticulosa reportagem de Saviano mostrava o tipo particularmente selvagem de capitalismo praticado pela Camorra napolitana e suas espantosas ramificações globais não só na esfera da ilegalidade — tráfico de drogas, armas e pessoas —, como também na de negócios legítimos como alta moda, crédito financeiro e distribuição de alimentos e eletroeletrônicos.
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Apesar das condições extremas em que vive, Saviano permanece inseparável do trabalho de repórter. Mais um de seus retratos devastadores do crime organizado (e ponha-se organizado nisso) está disponível em forma de série na Amazon Prime Video — agora, um painel horizontal das redes planetárias em que cartéis mexicanos, grupos paramilitares, companhias marítimas e a máfia calabresa ‘Ndrangheta se costuram uns nos outros, em um equilíbrio constantemente ameaçado por disputas internas de poder mas sempre mantido em prol da maximização e otimização de recursos. O quadro pintado por ZeroZeroZero (Itália, 2019) é infernal, e formidável; como Gomorra, a série vigorosamente dirigida pelo italiano Stefano Sollima (de Sicario: Dia do Soldado), pelo argentino Pablo Trapero (O Clã) e pelo dinamarquês Janus Metz (Borg vs McEnroe) transcorre sempre em um limiar sustentado com virtuosismo, aquele em que os imperativos macroeconômicos se colam às vicissitudes dos indivíduos que põem essa engrenagem em funcionamento.
Uma das qualidades de Saviano é expor a lógica que rege aquilo que, na aparência, é caos. Em ZeroZeroZero, essa clareza está na estrutura da dramaturgia, que segue o percurso intrincado de um carregamento de cocaína encomendado por um velho chefe da ‘Ndrangheta, Don Minu (Adriano Chiaramida), que planeja distribuir o lucro exorbitante a seus majores e assim preservar a influência que seu neto Stefano (Giuseppe De Domenico) vem ameaçando. O título alude à classificação italiana das farinhas de trigo; a zerozero é a mais refinada. Assim, a droga puríssima é embalada no México e colocada dentro de latas de pimenta jalapeño em conserva, que viajarão até o porto calabrês de Gioia Tauro em um dos navios dos americanos Lynwood — o pai (Gabriel Byrne) e os filhos Emma e Chris (Andrea Riseborough e Dane DeHaan, ambos fabulosos). Imprevistos acontecem, e Emma e Chris se veem, sozinhos, tendo de cruzar por terra o Norte da África com a carga, manobrando entre dúbios burocratas senegaleses e jihadistas que atuam no deserto de Mali até, na marroquina Casablanca, depararem com uma repercussão da rixa que se desenrola na ‘Ndrangheta.
Os dramas pessoais que afetam esses personagens são intensos — por exemplo, os sentimentos conflituosos entre Don Minu e o neto Stefano, que levam a um desenlace estarrecedor, ou o cabo de guerra em que Emma vive, dividida entre a preferência do pai e o amor ao irmão que, aos 30 anos, está já vendo a vida se esvair em razão de uma doença degenerativa. Mas talvez o personagem mais perturbador seja Manuel “Vampiro” Quinteras (o ótimo Harold Torres), integrante das Forças Especiais mexicanas que depõe de maneira, digamos assim, definitiva seu comandante para converter sua unidade em um exército particular que, em auto-homenagem, ele batiza de “Vampiros”. Manuel oferece de modo irrecusável seus serviços ao cartel dos Leyra, que se pretendem aristocratas do narcotráfico, para então tomar deles o poder.
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Devotadamente religioso, apaixonado por uma viúva grávida cujo marido ele mesmo matou e violentíssimo, Manuel é um personagem fugidio, quase impossível de compreender. Mas Torres o mapeia em detalhes reveladores do componente latino-americano da equação enunciada por Saviano — em particular, o sentimento de um potencial que nunca será realizado pelas vias normais e a humilhação a que mexicanos brancos e ricos como os Leyra submetem gente de origem humilde como ele. O mais sombrio de todos os protagonistas, entretanto, é o empreendedorismo do crime. A cada novo flagrante que se faz dele, de Traffic a Sicario, Gomorra e Narcos, ele se mostra mais complexo e mais avassalador. ZeroZeroZero sugere o pior — que já não há limite para ele, nem maneira de desmantelá-lo.
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Clique e AssinePublicado em VEJA de 13 de maio de 2020, edição nº 2686
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