Oscar 2017: A Qualquer Custo
Por que o faroeste nunca morre? Porque nós amamos e não deixamos

Para um gênero cuja morte já foi tantas vezes decretada, o faroeste é um defunto muito ativo e bastante animado: ele rende só um ou outro novo título, mas cada um deles é uma pequena explosão de vigor, vibração, inovação e originalidade – como o western virou coisa de realizador aficionado (caso de Quentin Tarantino), não é feito por obrigação ou de olho na bilheteria, mas por paixão. Um caso exemplar é A Qualquer Custo, que estreia nesta quinta-feira 2 de fevereiro com indicações ao Oscar de melhor filme, roteiro original, montagem e ator coadjuvante (para Jeff Bridges). O cenário é contemporâneo, mas os temas são clássicos: Chris Pine e Ben Foster são dois irmãos que estão roubando bancos um atrás do outro, sem parar, nas cidadezinhas do Oeste do Texas. O intrigante não é só o ritmo dos assaltos; é o fato de que a dupla leva muito pouco dinheiro em cada um deles. Jeff Bridges é o Texas Ranger veterano, às portas da aposentadoria, que gostaria de sair de cena com um bom caso bem resolvido, e tem lá sua intuição sobre os irmãos. Dois bandidos desesperados, um homem da lei vaidoso, um lugar onde todo mundo puxa a arma por qualquer coisa: vai ser uma calamidade. Mas uma calamidade belíssima, que o escocês David Mackenzie (do ótimo Encarcerado, que está na Netflix) dirige com gosto e encharca em cor local.

Leia a seguir a resenha completa. E, antes, confira uma lista de faroestes da última década que não dá para perder:
Django Livre (Netflix) – Nesta fantasia de vingança de Tarantino, Jamie Foxx manda bala nos senhores de escravos sulistas
Os Oito Odiados (Netflix) – Outra fantasia de Tarantino, com um bando de malfeitores trancafiados numa cabana durante uma nevasca
Rastro de Maldade (Netflix) – Kurt Russell é o líder do quarteto que tenta resgatar uma moça dos canibais (!!!) que a sequestraram
Onde os Fracos Não Têm Vez (Netflix) – No clássico moderno dos irmãos Coen, Tommy Lee Jones é o xerife que acha que já viu de tudo – até topar com Javier Bardem e perceber que as coisas sempre podem ser piores
Bravura Indômita (Netflix) – Os irmãos Coen, de novo, refilmam uma aventura célebre, com Jeff Bridges no lugar de John Wayne. Os resultados são excelentes
Oeste Sem Lei (NOW) – Michael Fassbender não sabe se ludibria ou protege um rapazinho que está à procura da garota amada. Uma espécie de mito de criação do Oeste
A Salvação (Looke) – Malfeitores acabam com a vida de Mads Mikkelsen, e ele quer justiça. Ou, se não for possível, vingança, vingança e mais vingança. Eva Green concorda com ele
Os Indomáveis (Looke) – Christian Bale é o fazendeiro pobre, Russell Crowe é o bandidaço, James Mangold dirige que é uma beleza. Uma refilmagem muito superior ao original
MISTURA FINA
Chris Pine e Jeff Bridges em um faroeste clássico na estrutura e contemporâneo na forma, realizado com viço notável. O resultado se resume em uma palavra: filmaço
Às vezes, há uma única palavra capaz de abranger as qualidades específicas de um filme: “filmaço”. E é com propriedade que ela se aplica a A Qualquer Custo, que estreia nesta quinta-feira no país com indicações ao Oscar em quatro categorias, entre elas a de melhor filme. O faroeste contemporâneo do diretor David Mackenzie tem a propulsão narrativa, a voragem dramática, a exuberância estilística e os desempenhos marcantes que caracterizam essa experiência cinematográfica particular. O escocês Mackenzie, além disso, absorve a cultura e a geografia do Oeste do Texas, que vai da fronteiriça El Paso até Lubbock e Amarillo – terra de gado e de petróleo, de gente perdendo o rancho e de gente bombeando milhões da terra –, com o fascínio dos forasteiros: seu olhar tem um viço que contagia cada cena e cada interpretação.

Chris Pine e Ben Foster são dois irmãos de personalidades contrastantes unidos em torno de um plano: na fenomenal sequência de abertura, eles já estão em plena maratona de roubo a banco. De cada agência em cidadezinhas sonolentas pelas quais passam, levam uma ninharia. Só notas de valor baixo, nada que esteja no cofre ou possa ser rastreado. Querem chegar rapidamente a uma determinada quantia – e roubá-la toda da mesma instituição, o Texas Midland Bank. Toby (Pine), o irmão racional e taciturno, é o articulador do método. Tanner (Foster), o irmão explosivo, recém-saído da prisão, cuida da intimidação e, se houver uma deixa, da violência. Toby e Tanner são rancheiros pobres e ignorantes, mas não falta a eles inteligência – nem desespero. No seu encalço está outra figura típica do faroeste: o velho homem da lei numa última missão. Marcus Hamilton, o Texas Ranger saborosamente interpretado por Jeff Bridges, é um tipo ardiloso. Prefere pensar a correr, e intui que os dois rapazes não são meros alucinados. São, ao contrário, meticulosos, e têm um propósito muito definido quanto ao valor que desejam amealhar, ao prazo em que pretendem fazê-lo e ao recado que querem mandar com sua escolha do Texas Midland. É hora então de parar de perseguir, decide Marcus, e simplesmente montar a armadilha e esperar que os dois caiam nela. Antes tudo fosse tão simples.

David Mackenzie (Sentidos do Amor, Encarcerado) é um recrutador de elenco perspicaz. Em A Qualquer Custo, Chris Pine atinge a intensidade que tem de abrandar como o Capitão Kirk de Star Trek, e mistura a ela uma boa dose de amargura. Ben Foster, sempre apreciado pela volatilidade, aqui a refina por meio do senso de humor. E Jeff Bridges, buscando referências no seu xerife de Bravura Indômita, está magistral. Seus diálogos com seu parceiro, o meio índio, meio mexicano e integralmente estóico Alberto (Gil Birmingham), são uma joia na escrita (a cargo do roteirista Taylor Sheridan, de Sicario) e na performance. Com suas incessantes tiradas racistas, Marcus ao mesmo tempo testa a intimidade da parceria e reafirma seu amor por Alberto. Ele ilustra ainda a mentalidade peculiar da porção Oeste do Texas – o culto ao individualismo e à independência de espírito, a crença na ordem pelas armas (e ainda mais no direito de portá-las) e a intrincada tessitura cultural de uma região tomada ao México e às tribos nativas, onde um grupo afirma sua preponderância e, no mesmo fôlego, incorpora esses valores múltiplos de maneira decidida, até desafiadora.

Para os apreciadores do western na sua forma clássica, Mackenzie tem outro imenso prazer a proporcionar: a graciosidade com que ele cita, um a um, os elementos cardeais do gênero. Dos desperados que recorrem ao crime como retribuição para a injustiça às entradas pressagiosas nos vilarejos poeirentos, da boa mulher que reconhece o caráter no âmago do bandido aos grupos de justiceiros que se formam espontaneamente para perseguir os renegados, toda a forma tradicional do faroeste está recriada para o enredo contemporâneo de recessão econômica e ganância corporativa. Mas é, acima de tudo, a feição mitológica do western que sobressai no estrondoso confronto final, em que tiros voam para todos os lados e alguns deles acham o alvo, e no desfecho transbordante de admiração e ameaça mútuas entre dois dos personagens. Não há, enfim, como descrever de outra forma: é um filmaço.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista VEJA no dia 01/02/2017 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2017 |
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A QUALQUER CUSTO (Hell or High Water) Estados Unidos, 2016 Direção: David Mackenzie Com Chris Pine, Ben Foster, Jeff Bridges, Gil Birmingham, Katie Mixon Distribuição: Califórnia |