De noite, no interior da barraca, o pai conta uma história — uma versão livre da passagem bíblica da Arca de Noé, na qual um raposo se sacrifica para salvar sua raposa do naufrágio; ela é a última de sua espécie, e deve viver. Os apartes da criança de uns 10 anos de idade mostram sua inteligência viva. Trata-se de um menino ou de uma menina? No que depender do pai, sua filha Rag (a soberba Anna Pniowsky) vai passar por garoto até onde for possível — ou nem será vista. No cenário pós-apocalíptico mas idilicamente silvestre de A Luz no Fim do Mundo (Light of My Life, Estados Unidos, 2019), que estreia no país nesta quinta, 17, quase todas as mulheres sucumbiram a um vírus, incluindo a mãe de Rag. A garota está entre as poucas imunes à infecção, mas corre perigo grave a cada minuto de cada dia; se algum homem notar sua existência, seu destino será brutal. Assim, Rag anda sempre disfarçada de menino e a dupla leva uma vida isolada, nômade e precária nas florestas — uma vida que começa a se tornar ainda mais dura à medida que Rag avança pela puberdade e seu desejo de independência e convívio cresce na mesma proporção em que diminui sua paciência para os regimentos impostos pelo pai.
Escrito, dirigido, produzido e protagonizado por Casey Affleck, este conto alegórico começa mergulhado em atmosfera, com paisagens em que as cores são atenuadas pelo cinza e o silêncio só é quebrado pelos ruídos da natureza e pela voz baixa de Rag e de seu pai. Mas o desenrolar vai ganhando em urgência quando a dupla entra em uma casa abandonada para descansar por alguns dias; essa será a primeira de várias fugas cada vez mais febris — e de encontros cada vez mais ameaçadores. Affleck é um mestre dos personagens retraídos e inarticulados, e brilha como o pai que procura palavras com as quais explicar à filha que nem todos os homens são ressentidos e violentos. As amostras que vêm pelo caminho o desmentem quase que inteiramente, porém. Affleck afirma ter escrito o roteiro bem antes das acusações de assédio que coincidiram com sua vitória no Oscar, por Manchester à Beira-Mar, há dois anos. Seja ou não um mea-culpa, A Luz no Fim do Mundo é um retrato tocante do amor tão pleno de um pai por sua filha que ele se obriga a temperar o instinto avassalador de protegê-la com a compreensão de que ela precisa crescer e ser quem é. Ser pai no apocalipse, enfim, não é muito diferente do que em qualquer outro tempo.
Publicado em VEJA de 16 de outubro de 2019, edição nº 2656