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Onde o mundo piorou

O declínio da saúde mental, em especial entre os jovens, é sombrio

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 18 mar 2023, 08h00

Nosso mundo teimoso parece sempre melhorar. A mortalidade infantil foi de 19%, em 1960, para menos de 4% em 2018, e a expectativa de vida basicamente dobrou no último século. Mesmo nesses tão mal falados anos de globalização, os dados mostram uma história surpreendente. Um trabalhador médio é capaz de comprar 2,5 vezes mais coisas, bens e serviços, com o mesmo tempo de trabalho, do que fazia há quarenta anos. É possível que Keynes tenha errado no timing quando profetizou, em seu famoso artigo dos inícios dos anos de 1930, que em perto de 100 anos teríamos resolvido nosso “problema econômico”, mas a verdade é que no sentido geral em que vamos caminhando, ele acertou.

Há, porém, um aspecto sombrio nisso tudo: o declínio da saúde mental, em especial de nossos adolescentes. Foi o que mostrou o amplo estudo publicado agora pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, que apresentou uma piora significativa nos sinais de insatisfação e depressão entre o público mais jovem na última década. O estudo mostra que quase três em cada cinco meninas adolescentes sentiram uma “tristeza persistente” em 2021, o dobro da taxa de meninos. E que uma em cada três meninas considerou tentar o suicídio. Luca Braghieri e outros pesquisadores publicaram um estudo na American Economic Review mostrando um “aumento de 83% no número de jovens entre 18 e 23 anos com algum relato de depressão, entre 2008 e 2018”. Os dados são abundantes e nos dão conta de um mal-estar mais amplo, na vida atual, do qual ninguém está inteiramente livre.

Muita gente tenta descobrir algum traço na economia, nos dramas sociais, nos ventos da política, para esse fenômeno. Jonathan Haidt e Greg Lukianoff vão na direção contrária: não há nada especialmente diferente com o planeta, dizem eles, o que mudou é o contexto de hiperinformação no qual mergulhamos. O universo onipresente da tecnologia e das redes sociais. A partir daí, as hipóteses são muitas. Uma delas fala da perda dos vínculos sociais. A rápida migração da sociabilidade cotidiana para um universo digital de baixa empatia. Outra fala do “efeito comparação”. A ideia de que vamos continuamente nos “empacotando para consumo público e vendo a nossa popularidade e a dos outros permanentemente quantificada”, como li por estes dias. O estudo de Braghieri mostrou que a introdução do Facebook no ambiente universitário americano produziu um “claro impacto negativo na saúde mental dos alunos, aumentando as chances de piora de seu desempenho acadêmico”. E por fim há o tema cada vez mais dramático da “economia da atenção”. Ninguém planeja seu dia dizendo que “hoje quero ficar três ou quatro horas batendo boca ou assistindo a vídeos inúteis”, provoca o pesquisador James Williams. Mas as pessoas ficam. E sua atenção é radicalmente capturada, e a sensação de uma permanente perda de foco e de tempo, e logo de sentido, passa a ser um “quase normal” da vida contemporânea.

“O declínio da saúde mental, em especial entre os jovens, é sombrio”

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Existe depressão entre os adolescentes também com a política. Há uma gradação. Meninas no lado “progressista” são o grupo mais suscetível à depressão, seguido pelos meninos com a mesma orientação. Meninas de afinidades conservadoras vêm logo a seguir e por último os meninos na mesma linha. Novamente, há a tentação da retórica política. Não faltou quem tenha culpado o “inferno capitalista”, a “mudança climática”, e até mesmo (sempre ele) a vitória de Trump. Quem colocou a bola no chão foi a jornalista Michelle Goldberg, obser­van­do que o declínio da saúde mental dos adolescentes tem uma inclinação negativa a partir de 2012, ano em que Barack Obama foi eleito para seu segundo mandato e pouco antes de a Suprema Corte Americana legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O problema nada tinha a ver com a ascensão deste ou daquele político, mas com uma época em que redes como o Instagram, entre muitas, crescem vertiginosamente, e são incorporadas ao modo de viver da nova geração.

Haidt e Lukianoff propõem uma inversão do raciocínio: o problema não está no planeta, na tecnologia ou na ação das big techs. A tecnologia é um dado com o qual precisamos lidar. Logo teremos novas gerações do Chat­GPT, os algoritmos ficarão ainda mais eficientes, a informação ainda mais ubíqua, e o mundo ainda mais complicado. De modo que a questão crucial não é criar algum tipo de redoma de vidro capaz de nos proteger das impurezas da caverna digital, mas mudar a forma como encaramos o problema. Em seu livro anterior, eles identificaram três “grandes erros” que vêm pautando nossa cultura digital e nossa educação. Um deles é a ideia de que “o que não te mata te fragiliza”. Outra é a confiança excessiva em nossos “sentimentos e sensibilidade”. Por último, a ideia comum no tribalismo atual, segundo a qual “a vida é uma batalha entre o bem e o mal”. O cultivo desses três grandes erros definiria muito do zeit­geist de nossa era digital e está na base do mal-estar contemporâneo. Na mesma linha, a escritora Angela Nagle mostrou como um tipo muito particular de cultura foi sendo forjado nos novos ambientes digitais. Ela nasce em redes como o Tumblr, logo explode no Twitter e se torna ubíqua. Sua marca: “Pessoas que desenham para si um tipo de boutique identity, reagindo com raiva a qualquer um que não reconheça seu caráter sensível e especialíssimo”. Entre seus mantras preferidos, a ideia de um mundo hostil, o dano, o trauma. E a crença quase obsessiva nas “palavras como forma de violência”. A tese é incômoda não para a defesa de direitos, mas para certa obsessão identitária contemporânea, que vai penetrando nas empresas, no cinema, na educação. O problema, provoca a pesquisadora Jill Filipovic, é que a aposta reiterada na linguagem do dano e da fragilidade termina por reforçar esse mesmo sentimento de fragilidade, reduzindo a capacidade das pessoas para “administrar adversidades inevitáveis e navegar em um mundo complicado”.

É plausível que isso atinja com mais força nossos adolescentes. Eles estão entrando agora no jogo, sem o aprendizado do sofrimento, e talvez por isso estejam pagando a parte mais salgada da conta. Ainda me lembro da leitura das memórias do revolucionário russo Victor Serge. Ele viveu os anos duros dos inícios da revolução russa, até finalmente escapar daquele inferno, e definiu sua experiência mais precoce como a de viver em um “mundo sem evasão possível”. Nosso mundo nos oferece o inverso, a sensação de uma evasão infinita. Observando o mal-estar contemporâneo, foi esta a imagem que me veio à cabeça. E com ela a pergunta sobre como lidar com isso. Com o excesso de ruído e de sombras na caverna digital contemporânea, com a abundância de palavras, imagens e ideias que por vezes no agridem, mas que podemos compreender como uma imensa riqueza a nosso dispor, ou como um campo minado, um mundo sujo e hostil, do qual precisamos nos proteger e com o qual nada temos a aprender.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833

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