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O país do meio-tom

O padrão histórico: interesses concentrados ganham o jogo

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 4 nov 2023, 08h00

“O mercado é ganancioso demais”, disse Lula, naquele encontro com os jornalistas, para justificar por que não precisa ou não cumprirá a meta fiscal de zerar o déficit público, ano que vem. Lula sabe perfeitamente que não foi o mercado, mas o próprio governo, quem definiu as metas do novo arcabouço fiscal. Mas sabe também que o truque de culpar o mercado de qualquer coisa sempre funciona. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, daria o toque final: a culpa seria do (sempre ele) Roberto Campos Neto, que teima em não baixar os juros. Bingo. É evidente que nada disso faz nenhum sentido. No mundo real, foi o próprio governo que tratou de criar o déficit, quando aprovou, ainda em dezembro passado, a PEC da Transição, autorizando 145 bilhões de reais de gasto a mais, sem lastro fiscal. Depois disso nomeou seus 38 ministérios, passou a gastar como se não houvesse restrição fiscal, abriu mais de 9 000 vagas de concursos, deu 9% de aumento para o funcionalismo, além de coisas esquisitíssimas, como incentivos a empresas aéreas e o “feirão do carro zero”, ao custo de 800 milhões de reais para o contribuinte. Nesse tempo todo, parece clara uma certa irritação de Lula quando surge o tema “responsabilidade fiscal”. No que ele não está de todo errado. Nunca prometeu, na campanha, que seria diferente. De modo que não vejo surpresa que o país, de superávit de 0,5% do PIB, em 2022, tenha passado voando a um rombo de perto de 100 bilhões de reais, ou 1% do PIB, em exatos dez meses.

Naquela mesma entrevista, passou meio desapercebida uma outra frase exemplar de Lula. Disse, sem meias-­palavras, que era um “direito” do PP e do Republicanos indicar o presidente da Caixa Econômica Federal. “Eles têm mais de 100 votos”, diz, “e eu preciso desses votos para continuar o governo”. Em uma frase, Lula traduz à perfeição o exato oposto do que pretendeu fazer a Lei das Estatais, aprovada pelo Congresso em 2016, e hoje inteiramente destruída. É a mesmíssima questão que leva a Petrobras a mudar seu estatuto para abrigar indicações políticas. Em vez de proteger as estatais da lógica de captura por parte do mundo político, caminha-se na direção contrária. Estatais voltam a funcionar como moeda de troca política, e talvez só nos reste torcer para que o resultado não seja o mesmo que se viu, quando isso funcionou como regra, alguns anos atrás.

É difícil não enxergar nestas coisas um padrão. Uma espécie de agenda oculta da política brasileira: a crônica vulnerabilidade aos grupos de pressão. Por vezes, são grupos ligados à esfera pública. Os partidos, a alta burocracia, os sindicatos, os “interesses do governo”. Em outros momentos, a captura vem do mundo privado, dos setores econômicos mais bem organizados. É o que se passa com a reforma tributária, transformada em uma guerra entre lobbies econômicos pela “conquista” de um tratamento privilegiado. O que pode significar, na prática, pagar 40% da alíquota padrão do novo imposto sobre valor agregado. Uma penca de setores já conseguiu, incluindo-se o setor aéreo, eventos, turismo, bares e restaurantes e agronegócio. Todos com boas razões, em geral associadas à “geração de empregos”. Não por coincidência, a mesma justificativa usada para renovação da desoneração da folha, na outra semana, para o feirão do carro zero e para quase toda a engenharia econômica brasileira. Além de parecer muito estranho que tantos setores precisem de incentivos do governo, para gerar empregos, chama atenção que ninguém faça a pergunta inversa: se geramos empregos a mais, nos setores que irão pagar menos tributos, quantos empregos iremos gerar a menos, nos setores que terão de pagar mais para fechar a conta? Sendo a equação decidida pela capacidade de lobby de cada setor, e não por um hipotético (e talvez impossível) cálculo econômico, a resposta correta é que ninguém faz a menor ideia. Minha desconfiança é que tudo atenda a um padrão velho conhecido nas democracias: interesses concentrados e bem organizados ganham o jogo, interesses difusos e “silenciosos”, no embate político, pagam a conta.

“O padrão histórico: interesses concentrados ganham o jogo”

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A uma ótima imagem disso assisti, por estes dias, em diversas cidades brasileiras. Imensas filas com trabalhadores esperando para entregar uma carta dizendo que não queriam pagar a nova “contribuição” ao seu respectivo sindicato. As filas são o resultado de uma decisão do STF, permitindo que os sindicatos criem uma “contribuição assistencial” sem a autorização prévia dos trabalhadores. O sindicato vai lá, cria a taxa, e apenas depois, e do jeito que o próprio sindicato determinar, o trabalhador pode rejeitar, ou fazer “oposição” à sua cobrança. Na prática, ficar em uma fila imensa, numa calçada qualquer, Brasil afora. Sem chiar, sem fazer drama ou pressão, em Brasília. Apenas para dizer que não quer tirar aquele dinheiro do bolso, como era seu direito, a partir do que foi aprovado na reforma trabalhista de 2017.

O ponto é que há um fio condutor na história incômoda desse país que sacrifica o equilíbrio fiscal para financiar o status quo estatal, com seus 25 000 funcionários ganhando acima do teto, seus 38 ministérios e 37,5 bilhões de reais em emendas parlamentares; que distribui regimes fiscais especiais, na reforma tributária; que inverte a lógica da reforma trabalhista, apostando na desinformação dos trabalhadores para alimentar as estruturas sindicais; que distribui posições de comando nas estatais para obter votos, no Congresso. O fio condutor é a captura. A lógica do “Estado intrometido”, na boa definição que escutei, em um debate, tempos atrás, sempre inclinado a favorecer este ou aquele setor econômico, esta ou aquela corporação pública.

Quem refletiu com certa melancolia sobre isso foi o grande historiador brasileiro José Murilo de Carvalho, que recém nos deixou. Em seu Cidadania no Brasil: O Longo Caminho, escrito no início dos anos 2000, ele cunhou uma expressão algo irônica, dizendo que em vez de uma cidadania plena, havíamos criado a “estadania”, no Brasil. Uma certa “propensão messiânica”, dizia ele, de “esperar e estranhamente aceitar tudo o que venha de cima, mesmo ao custo do abuso, da interferência na liberdade individual”. Foi exatamente a sensação que tive quando vi nossa tênue promessa de equilíbrio fiscal afundar, nossas estatais novamente loteadas pelo mundo político, e aquelas filas de trabalhadores silenciosos, dobrando a quadra dos sindicatos.

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Em uma de suas últimas entrevistas, José Murilo parecia expressar um enorme desalento. Perguntado se ainda considerava o Brasil um “país do futuro”, respondeu lacônico: “Não, não é. Não enxergo um futuro bom para o país, os dados não fecham”. Confesso não comungar de seu pessimismo. Prefiro ver o Brasil como um país de meios-tons. Por vezes avançamos em reformas modernizantes, por vezes recuamos. Nossa velha tradição patrimonialista, o vezo de confundir o público com o privado, o império dos pequenos interesses, parece nos puxar pelo pé, como uma assombração. É nesses momentos que é preciso parar e refletir. E quem sabe aprender alguma coisa para o futuro.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2023, edição nº 2866

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