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O eterno retorno

Uma alternativa para a educação: financiar a demanda, e não a oferta, como faz o ProUni

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 9 dez 2023, 08h00

“Sete entre dez alunos brasileiros não sabem o mínimo em matemática”, dizia uma manchete. Soa como um flashback de três ou seis anos atrás. Espécie de eterno retorno nietzschiano, numa livre interpretação, com uma pitada de tragédia. O resumo é o seguinte: estamos entre os 25% pior situados, no ranking de 81 países pesquisados e não melhoramos substancialmente nada, desde 2009. Apenas 27% de nossos alunos alcançam um nível básico de proficiência, em matemática, contra 69% nos países da OCDE. O teste é o Pisa, feito pela OCDE, a cada três anos, com estudantes de 15 anos. Diante dos resultados, as reações são as de sempre. Uma parte aposta na guerra política. A culpa seria dos “treze anos de PT” e de “Paulo Freire”; ou então do “desmonte”, de Bolsonaro. Outra parte aposta nas platitudes de sempre: “mudar os currículos”, “treinar professores”. Frases que soam bem, dependendo da ocasião. E, por óbvio, não dão em nada.

O teste revela a existência de dois Brasis. Um país representado pelas redes estatais de ensino, estaduais e municipais, que atendem mais de 83% dos alunos, com média perto de 360 pontos. Próxima à de países como o Kosovo e o Marrocos, nas últimas posições da tabela. E há o Brasil feito das escolas de gestão privada, que representam 13,3% dos alunos, com média de 456 pontos. Próxima à dos Estados Unidos. Há um abismo entre esses dois Brasis, que em geral empurramos para debaixo do tapete. O aspecto central, aqui, é: não há uma crise “genérica” da educação brasileira. O que há a falência crônica de nosso modelo de gestão estatal da educação. O mesmo problema que atinge basicamente toda a gestão de serviços estatais no Brasil. Nossos presídios e hospitais estatais; nossos antigos aeroportos geridos pela Infraero, quem vêm sendo hoje concedidos. Esse diagnóstico, diga-se de passagem, já é feito desde os anos 1990, à época da reforma do Estado. O que fazemos, na educação pública, é transferir para os mais pobres a ineficiência do setor público, sua burocracia, seu mando corporativo, sua falta de meritocracia, competição e incentivos adequados.

O modelo funciona como um tipo de “tragédia dos comuns”. Um sistema em que nenhum dos agentes que trabalham nele paga a conta dos péssimos resultados produzidos pelo próprio sistema. Os professores da rede pública de São Paulo podem faltar trinta dos 200 dias letivos do ano, como mostrou o TCE. Não dá nada. Os secretários e dirigentes que se sucedem podem fazer um bom ou mau trabalho. Consequência zero. Governadores e prefeitos, idem. Se a performance dos alunos aumentou ou deixou de aumentar, não fará muita diferença nas eleições. As escolas, por sua vez, também não se responsabilizam diante dos pais. Se os alunos não aprendem, é fácil pôr a culpa no “governo”, na “falta de recursos”. Ou simplesmente não dizer nada. No fim do dia, qual seria mesmo a alternativa dos pais? Eles podem trocar de escola? A resposta é evidente. E já aí se vê o tamanho do nosso hiato social.

“Uma alternativa: financiar a demanda, e não a oferta, como faz o ProUni”

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Por que mantemos esse sistema? Há muitas respostas para isso. Há um enorme ecossistema de corporações e “especialistas” em educação que vivem à sombra do sistema estatal. Os sindicatos mantendo seu monopólio; os “especialistas” produzindo recomendações que nunca funcionam, mas que por alguma razão lhes garantem um mercado de consultorias, institutos e conferências. Longe de tudo, no mais perfeito silêncio, o usuário. Os pais. As famílias desses mais de 83% de alunos presos a um sistema que ensina muito pouco, e sobre o qual eles não têm poder. Vai aí a grande ironia: nosso sistema de educação pública é desenhado por uma elite que não utiliza, nem jamais utilizará, o próprio sistema. Tempos atrás vi isso de uma maneira que me tocou. A prefeitura de São Paulo fez um contrato com o Liceu Coração de Jesus, permitindo que os alunos de menor renda estudem em uma escola antes acessível apenas à classe média. O ganho era evidente para aquelas crianças. Nossos sindicalistas e “especialistas”, no entanto, discordam. Em uma audiência, eles foram lá com seu tradicional mantra “só escolas estatais”. Foram contraditados de maneira firme pelo representante dos moradores: “A única coisa que queremos”, disse ele, “é que estes alunos tenham as mesmas oportunidades que os alunos de bairros chiques”. Ele era o quase solitário usuário. Em regra ausente nas mesas e gabinetes em que se decide sobra a educação no Brasil.

O interessante é que temos ótimas alternativas para mudar. Uma delas consiste em inverter a equação educacional: financiar a demanda em vez de financiar a oferta. É o que faz o ProUni no Brasil. Modelos em que o governo financia os alunos, ofertando bolsas, e permite a cada um escolher onde estudar. É o modelo amplamente testado em países com a Suécia e Chile. A sua vantagem é a oferta aos mais pobres de um direito “sagrado” de que só as famílias mais ricas dispõem no Brasil: escolher onde seus filhos irão estudar. Há um princípio ético aí. Crianças não são peças de uma engrenagem, que o Estado tem o direito de encaixar onde bem entender. Pelo número do CEP, por exemplo. O modelo tem ainda a vantagem de permitir que crianças de maior e menor renda; brancos e negros, estudem juntos. O que é vital para produzir maior equidade ao longo da vida.

Outro modelo é o do estabelecimento de contratos entre os governos e boas escolas privadas. Isso pode ser feito via PPPs, via o modelo das Organizações Sociais, com organizações filantrópicas, ou ainda via os modelos como Senai e Senac. Alternativas não nos faltam. Temos os aeroportos concedidos ao setor privado, os parques, como o Ibirapuera, em São Paulo. E ainda os hospitais geridos por organizações de excelência, como os hospitais Albert Einstein e Sírio-Libanês. Tudo isso é amplamente sabido. Apenas na educação parece vigorar um certo pensamento metafísico segundo o qual “tudo deve ser eternamente um monopólio estatal”, independentemente de qualquer resultado obtido pelo sistema.

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O que precisamos, no Brasil, é colocar o usuário, isto é, os alunos e famílias de menor renda, no centro do debate educacional. O desafio não é defender este ou aquele sistema, mas saber qual deles o atende os estudantes. E deveríamos perguntar isso a eles, seus pais, suas famílias: que modelo preferem? Que tipo de escola pode produzir os melhores resultados, além de atender a critérios éticos, como o direito de escolha? Por fim, há um desafio ético a ser enfrentado. Vencer a ideologia perversa que ronda nosso debate educacional, segundo a qual “os alunos não aprendem porque são pobres”. A renda, por óbvio, afeta o desempenho. Mas não o define. É exatamente por isso que a escola que atende os mais pobres precisa ser de excelência. E que a partir daí nossas crianças e jovens aprenderão. Florescerão, como é seu direito. E ajudarão a construir um grande país para os que virão à frente.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2023, edição nº 2871

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