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Labirinto da democracia

É falsa a oposição entre 'respeitar direitos individuais' e 'defender a democracia'

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 1 jul 2023, 08h00

Muita gente diz que o Brasil se tornou uma democracia pela metade. Um sistema que respeita a regra majoritária, alternância de poder, mas fragiliza garantias do estado de direito. De um lado, se diz que era preciso aceitar certos “excessos” do Judiciário, admitir a “experimentação regulatória”, na linguagem elegante do ministro Fachin, ou a censura em situação “excepcionalíssima”, como naquela decisão da ministra Cármen Lúcia. Tudo por um bom motivo. De outro, se diz que isto não passa de um exercício de autoengano. Que eventuais ameaças à democracia devem ser enfrentadas com as armas do próprio estado de direito, e que a verdade é que “o juiz entrou no jogo”, como me definiu um crítico mordaz, por estes tempos. Algo que jamais poderia acontecer em uma democracia.

Pensava nisso quando li a ação do Ministério Público para banir uma das rádios de maior audiência do país, por delito de opinião, quase ao mesmo tempo em que lia um ótimo artigo do professor Carlos Pereira, da FGV, sobre a natureza de nosso modelo político. “Nosso presidencialismo multipartidário”, diz o professor, “não foi desenhado para gerar eficiência, mas para incluir os mais variados interesses da sociedade no jogo político. Promessa que tem sido entregue e gerado “equilíbrio” em uma sociedade extremamente diversa e heterogênea”. De acordo. Foi ao que assistimos, com altos e baixos, nas três décadas que se seguiram à Constituição de 1988. Foram nove eleições presidenciais. Preservamos liberdades e efetivamos uma “democracia inclusiva”, permitindo a expressão e a chegada ao poder de diferentes “lados” da política brasileira. Foi assim com os sociais-democratas de Fernando Henrique, nos anos 1990; os socialistas e sociais-democratas de Lula, nos anos 2000, e logo com a “nova direita” de Bolsonaro, em 2018.

É precisamente aí que as coisas começam a mudar. Escrevi sobre tudo isso à época das eleições de 2018. Disse que era assim nas grandes democracias: em uma eleição ganha a esquerda, e implanta suas políticas de esquerda, e em outra ganha a direita, e vice-versa. E que aquilo seria um teste crucial não apenas para nossas instituições, mas para nossa cultura política. Para saber se nossos autoproclamados “democratas” estariam dispostos a reconhecer a legitimidade de um tipo de pensamento, valores e mesmo de uma estética diametralmente opostos a sua visão de mundo. Por óbvio, não estavam. Mas o aspecto crucial daquilo tudo foi o ingresso da Justiça na arena política. O inquérito das fake news foi aberto já em março de 2019. Originalmente, censurou a Revista Crusoé, atitude criticada pela então oposição. Mais adiante, quando o mesmo inquérito voltou suas baterias contra o “outro lado”, aquela mesma oposição passou da crítica à euforia. Em junho de 2020, o inquérito foi renovado. Houve um solitário voto contrário do ex-ministro Marco Aurélio, dizendo que o “Supremo não é sinônimo de absoluto”. Suas palavras se perderam na poeira. A partir dali, assistimos a tudo que estamos cansados de saber. Um partido banido por um punhado de tuítes irrelevantes; um professor de economia censurado por indagar alguma coisa sobre o sistema eleitoral; um grupo de empresários banidos por um papo-furado no WhatsApp; jornalistas com passaporte retido; deputados banidos da internet, em decisões “de ofício”, à revelia da imunidade assegurada no Artigo 53º da Constituição. Depois disso, tivemos a virtual edição do debate eleitoral, a partir da tese elitista sobre a incapacidade do “eleitor ordinário” para lidar com a “desordem informacional”. Foi ao que assistimos. Acusar um candidato de corrupção? Só com decisão judicial. Lançar um filme? Só se passar pelo teste algo metafísico de “presunção de veracidade”, visto que nem sequer seu conteúdo era conhecido. No debate do PL das Fake News, as plataformas digitais foram duramente censuradas e impedidas de expor sua visão; um youtuber é banido, sem menção a lei alguma; um humorista é preso por meses, sob a mesma lógica da fraseologia seguida de pontos de exclamação, posta no lugar do direito. Muita gente acreditou na urgência de cada uma dessas atitudes, o que é em si mesmo um dado para nossa reflexão. Por que cargas d’água proibir a menção do sabido vínculo de Lula com ditadores latinos, como Maduro e Ortega, seria essencial à democracia? Qual a “grave ameaça” contida na discurseira do Monark, naquele tuíte do PCO ou das indagações do professor Marcos Cintra? O fato simples de que sempre foi perfeitamente falsa a oposição entre “respeitar direitos individuais” e “defender a democracia”.

“O aspecto crucial foi o ingresso da Justiça na arena política”

Tudo isso vai muito além do tema da liberdade de expressão ou dos direitos individuais. A questão diz respeito ao próprio “equilíbrio na diversidade” mencionado na tese otimista do professor Carlos Pereira. O ponto é que a “exceção” se tornou política de Estado, no Brasil, e a questão é saber o impacto disso precisamente sobre a ideia de uma democracia inclusiva e aberta à expressão de nosso pluralismo político. E mais: se o que temos presenciado não é exatamente o que tantos temiam: nosso deslizamento para uma democracia de traços não liberais. Tipo difuso de autoritarismo fragilizando prerrogativas e direitos republicanos. O professor Carlos Pereira observa que, mesmo podendo-se identificar excessos por parte do Judiciário, “a maioria da sociedade parece estar relativamente satisfeita com o desenho atual” que concede ao Judiciário uma “macrodelegação” de poderes. Sua análise é realista: “o custo marginal da mudança tem sido maior do que o do status quo”. De fato, o Senado vem se recusando a exercer controle sobre a ação do Supremo, boa parte do sistema político parece satisfeita com o modelo de tutela, e há apoio da sociedade civil. Somos um estranho país em que “garantistas” apoiam prisões de ofício e todo jogo interpretativo do direito, desde que a seu gosto. E onde, como bem disse Jorge Pontual, boa parte da mídia apoia a censura.

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Processos de “autocratização” e fragilização de garantias individuais não raro ocorrem assim: com suporte majoritário e cálculo, que vai do apoio à passividade, na elite política. É o caso brasileiro. Censura e quebra de prerrogativas são aplicadas homeopaticamente, e a cada vez produzem mais recuo e medo. Quanto se produz de autocensura, no jornalismo, quando um jornalista tem seu passaporte retido? Quanto se “disciplina” um parlamentar, quando um colega é banido? E quanto aquilo que é inaceitável, em um primeiro momento, vai ganhando ares de normalidade? Um blogueiro censurado em 2019? Grave. Um humorista preso em 2023? Indiferença. Ao menos desde aquela época de autoconfiança democrática, que se seguiu à Constituição, muita gente imaginou que havíamos enterrado o passado autoritário, e que de alguma forma havíamos incorporado o que Sérgio Buarque tão bem definiu, já nos anos 30, como um dado estranho a nossa cultura política: o “ponto de vista jurídico e neutro em que se baseia o liberalismo”. O fato é que não. Quase um século depois daquelas palavras algo proféticas, andamos em um labirinto, cuja saída parece distante.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 5 de Julho de 2023, edição nº 2848

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