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Da República e democracia

Instituições que dizem ‘não’ ao presidente protegem os cidadãos

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 17 jan 2022, 17h50 - Publicado em 15 jan 2022, 08h00

O contra-almirante Barra Torres, presidente da Anvisa, disse que Bolsonaro deveria provar o que havia dito — que havia “interesses” por trás da decisão da Anvisa sobre a vacinação infantil — ou então deveria se retratar. Nos corredores de Brasília a opinião geral era de que Barra Torres havia dado uma “enquadrada” em Bolsonaro. De certo modo é verdade. É evidente que Bolsonaro não tinha nenhuma informação objetiva sobre nada que pudesse desabonar a conduta de Barra Torres. Era só mais uma frase vazia, na estranha cruzada presidencial contra as vacinas. Dias depois recuou, como de hábito, dizendo que não havia falado em corrupção, “mas que tem alguma coisa ali, não tem a menor dúvida…”.

É só mais um episódio. Ele nos conta muito sobre o debate brasileiro atual. Em primeiro lugar, Barra Torres fez aquela carta porque pode fazer. Ele tem mandato até 2024, seu nome foi aprovado pelo Senado, e o presidente não pode nada contra ele. Se ele errou no “tom”, cada um pode julgar. O fato é que o país aprovou um marco regulatório para as agências reguladoras, no primeiro ano do próprio governo Bolsonaro, que deu ampla autonomia às agências, estendeu o mandato de seus diretores para cinco anos e criou regras duras de proteção contra sua “captura” pelo sistema político, como a proibição de nomear políticos e seus parentes até o terceiro grau para cargos de comando em suas diretorias e conselhos.

Quando a lei das agências reguladoras foi aprovada no Congresso, em 2019, Bolsonaro vetou a lista tríplice, para indicação dos presidentes de agências, e usou um argumento curioso. “Vocês querem que eu vire a rainha da Inglaterra?” Quando escutei a frase, achei uma boa ideia. E foi o que aconteceu. Na última live sobre o tema, Bolsonaro lascou, referindo-se a Barra Torres: “Depois da nomeação, ele ganhou luz própria, espero que ele acerte lá”. Bolsonaro parecia magoado que o contra-almirante, indicado por ele, não siga as suas recomendações. Não deveria. Deveria estar orgulhoso e dizer o seguinte: tenho orgulho de um país onde o presidente pensa uma coisa, mas há uma agência independente, de caráter técnico, que decide em outra direção. É o Estado brasileiro funcionando.

Um dos traços das democracias iliberais é exatamente essa colonização de estruturas independentes, do Estado, pelo poder político. Na Venezuela, Chávez mudou a composição da Suprema Corte e nomeou juízes aliados ao governo. Um grupo de juristas venezuelanos analisou 45 474 sentenças do Tribunal Supremo de Justiça, entre 2004 e 2013, e descobriu que nenhuma delas contrariou as posições do governo. O comando é político e a autonomia do Judiciário virou peça de ficção. No Brasil, fomos na direção contrária. Nossa Suprema Corte não apenas preservou seus poderes, como os ampliou. Tornou-se poder “moderador” da República, além de “curador” de opinião, como disse o ministro Dias Toffoli.

“Instituições que dizem ‘não’ ao presidente protegem os cidadãos”

No plano da regulação e políticas públicas, não só fizemos uma lei robusta de autonomia das agências reguladoras, como consagramos a autonomia do Banco Central, o que significa que o presidente não tem mais poder sobre a política monetária. À época da aprovação da autonomia do BC, Ciro Gomes disse que era o caso de o povo “ir para as ruas e quebrar tudo”. Lula disse que a lei “entrega a administração do Banco Central ao sistema financeiro”. O argumento é curioso. Se é o presidente que indica e o Senado que aprova a direção do banco, por que raios o poder passaria ao mercado financeiro? Na verdade, não passa. Assim como não há nenhum “interesse por trás” da decisão da Anvisa ao autorizar a vacinação infantil. É apenas o resmungo dos políticos, à esquerda e à direita, contra a ideia de que uma República digna desse nome se faz com o adequado equilíbrio entre as esferas de decisão política e instituições de natureza técnica, com visão de longo prazo, devidamente protegidas do vaivém dos humores do mercado político.

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Em um caso como esse da vacinação infantil, há duas opções. Ou os políticos tomam a decisão, Bolsonaro ou qualquer outro presidente, ou a decisão fica com uma agência independente, de corte técnico. Qual das duas é a melhor? Políticos e técnicos podem errar, não é essa a questão. A pergunta é: qual dos dois modelos está menos sujeito a ideologia e jogos de pressão? Outra questão: alguém se sente tolhido de seus direitos democráticos porque uma decisão dessas é tomada por uma agência independente, e não por um político eleito?

Reflexões como essa levaram o professor Garrett Jones, da Universidade George Mason, em Washington, a escrever um livro com um título provocador, 10% Less Democracy (clique aqui para comprar). Jones quase foi “cancelado” quando disse, em uma palestra, que estaríamos um pouco melhor se tivéssemos um pouco menos de democracia. Ele havia trabalhado no Senado americano e visto como os senadores mudavam sua postura quando se aproximavam do período eleitoral. Um acordo de livre-comércio, por exemplo, dificilmente era apoiado pelos parlamentares a menos de dois anos das eleições. É só um exemplo. O sistema político de fato funciona assim. Percebam como algo patético acontece exatamente agora, no Brasil. O crescimento do país é pífio, há reformas cruciais a fazer, tributária e administrativa à frente, mas aceitamos passivamente que “tudo ficará para 2023”. Ou seja, 25% do tempo da política jogamos pela janela evitando “decisões difíceis” e sujeitas a bizarrices populistas.

Jones diz que a democracia é ótima, e até por isso precisa funcionar. E que, a partir de um certo ponto, o hiperdecisionismo político só cria ineficiência, sem garantir direitos nenhum. Países que protegem centros estratégicos de decisão, como bancos centrais e agências de regulação, geram previsibilidade, segurança jurídica para indivíduos e investidores, e apresentam melhor performance a longo prazo. Há quem diga que isso é tudo muito pouco democrático. Que o melhor seria deixarmos tudo nas mãos dos políticos eleitos, dado que eles representam a “vontade da maioria”. Bolsonaro talvez pense dessa forma, no tema da Anvisa, assim como Lula, no tema do Banco Central. Mas eles podem estar errados. Talvez do que realmente estejamos precisando não é de um governo menos democrático, mas de um Estado apropriadamente republicano.

Os pais fundadores da República americana sabiam que tinham um trabalho complexo pela frente. Que era preciso, como escreveu Hamilton, em O Federalista, “primeiro habilitar o governo a controlar os governados e, depois, o governo a controlar a si próprio”. Eleições são essenciais à República, mas não a definem. É preciso conhecer a “natureza humana” para constituir um bom governo. Governantes erram, o abuso espreita o exercício do poder. “Os homens não são anjos. Se o fossem”, diz Hamilton, “nenhuma espécie de governo seria necessária”.

O Brasil, aos trancos e barrancos, caminha nessa direção. Nosso presidente fica mal-humorado quando contrariado, mas deveria se orgulhar em contar com uma engrenagem de instituições feita não para garantir decisões perfeitas, mas para reduzir a chance da imperfeição. Instituições que frequentemente lhe dizem “não”, com isso nada mais fazendo do que proteger os nossos direitos. O que é, no fim das contas, a missão mais essencial do contrato político.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2022, edição nº 2772

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