Lula vem sendo particularmente claro sobre o que pretende fazer no governo. Já disse que é contra a regra do teto, que vai “regular os meios de comunicação deste país”, que é contra privatizações, que vai intervir na política de preços da Petrobras e que vai reverter a reforma trabalhista. “O que está havendo com Lula?”, me perguntou, dias atrás, um jornalista experiente. Fiquei pensando. Há quem dê de ombros e diga que tudo isso não passa de papo de campanha. Que Lula é uma “metamorfose ambulante”, e que logo teremos uma nova “carta ao povo brasileiro”, pedindo para esquecermos qualquer radicalismo. Não vejo as coisas assim. Penso que Lula está sendo sincero, e isso é ótimo para o debate democrático.
Vale o mesmo para Bolsonaro. Não que ele apresente uma visão estruturada sobre o país, mas tudo o que seu governo vem fazendo caminha na direção contrária à de Lula. Bolsonaro diz que não vai regular a mídia nem as redes sociais. Dias atrás lembrou que não deixou de considerar o coronel Brilhante Ustra um “grande brasileiro”. Bolsonaro votou na regra do teto, na reforma trabalhista e aprovou a reforma da Previdência, já no seu governo. Fez andar à frente, ainda que aos tropeços, algumas privatizações e recentemente disse querer se ver “livre” da Petrobras, sugerindo que vai privatizá-la, caso reeleito.
De novo, pode-se dizer que tudo é balela, que o tal programa liberal de Paulo Guedes não andou e que lá no fundo Bolsonaro é tão “corporativista” quanto a esquerda. De fato, Bolsonaro tem um histórico corporativista, mas muitas das iniciativas do governo contam uma história um pouco diferente. Alguém acha corporativista a autonomia do Banco Central? Ou a lei da liberdade econômica? Ou quem sabe o novo marco do saneamento básico, chamado pelos deputados petistas de “privatização da água”?
Ainda na outra semana li um jornalista que escreveu que a terceira via erra ao equiparar Lula com Bolsonaro. Também acho. Se observarmos com alguma frieza, o grupo político ao qual Bolsonaro se associa, com idas e vindas, votou a favor de toda a série de reformas que o país fez, desde o processo de impeachment de Dilma. Teto de gastos, lei das estatais, reformas trabalhista e previdenciária, lei das terceirizações, Banco Central, novos marcos regulatórios, privatização da Eletrobras. A lista não é pequena. O grupo em torno de Lula votou contra tudo. Não estamos falando de retórica, mas de um padrão consistente de votações no Congresso, ao longo de quase seis anos. Cada um pode ter a opinião que quiser sobre essas reformas. Mas não passa de discurso vazio sugerir que não existem diferenças bastante objetivas entre os dois blocos políticos. Por óbvio, há inconsistências por todos os lados. A falta de firmeza do governo em temas centrais, como as reformas administrativa e tributária, é exemplo disso.
“Bolsonaro e Lula não escondem seus ditadores favoritos”
Na chamada “questão democrática” há um curioso jogo de aproximação e afastamento. Bolsonaro não esconde seus ditadores favoritos, que são basicamente nossos generais-presidentes. Lula nunca escondeu suas simpatias pela ampla variedade de ditadores da esquerda latino-americana. Amigo dos irmãos Castro, nunca deu um pio sobre temas de direitos humanos na ilha do Caribe. Mesmo diante daquela repórter indignada, na Espanha, defendeu bravamente Daniel Ortega e Hugo Chávez, com direito à pergunta que ficou famosa: “Se a Angela Merkel pode ficar dezesseis anos no poder, por que Daniel Ortega não?”. Para ficar em dois exemplos chilenos, nem Bolsonaro representa uma direita “racional” e moderada, ao estilo de um Sebastián Piñera, nem Lula é um Gabriel Boric, crítico duro das ditaduras de esquerda e explícito na defesa de políticas de responsabilidade fiscal.
O curioso nisso tudo é o posicionamento da terceira via. O Radar do Congresso mostra que os partidos da chamada terceira via são, de fato, governistas, no mundo real das votações em Brasília. Ao longo do mandato de Bolsonaro, o PSDB votou 83% das vezes com o governo. João Doria pode dizer que Bolsonaro é o capeta, mas, a cada dez votações no Congresso, seu partido fechou oito vezes com o governo. No PSD, o índice de governismo vai a 91%. No União Brasil, o novo partido de Sergio Moro, vai a 90%. Do outro lado do jogo, de fato há uma oposição. O PT só acompanhou o governo em 24% das votações; o PSOL, em 18%. Lula e seus apoiadores foram coerentes não só durante o governo Bolsonaro, mas desde as primeiras votações no pós-impeachment.
A terceira via, numa palavra, carece de identidade. A retórica por vezes radical contra o governo, logo abaixo do teatro da política, se mostra um tanto vazia. Isso sob um aspecto vital da política, que efetivamente diz respeito à vida dos cidadãos: as leis e projetos votados no Congresso. Sob esse aspecto, só há efetivamente duas vias em disputa, nas eleições deste ano. Talvez isso explique um pouco de nossa polarização política, que é hoje ainda maior do que há quatro anos. Em abril de 2018, os dois líderes somavam 47%. Hoje, têm 69%. É difícil, ainda que não impossível, que a terceira via consiga se viabilizar. Seria ótimo que o país dispusesse de uma esquerda moderna, que não goste de ditaduras e leve a sério a responsabilidade fiscal; e uma vertente liberal, que não ache que 64 foi uma “revolução para salvar a democracia” e não misture política com religião.
Mas não há nada disso muito viável no horizonte político. E a culpa é única e exclusivamente dos eleitores. Aprendemos a nos contentar com isso que está aí. O que temos são opções com alguma nitidez, no terreno econômico, dadas pelo histórico de votações no Congresso. Elas projetam uma imagem do Brasil, para os próximos anos, e é bom que cada um forme seu juízo. Não sou dos que acham que há apenas um lado legítimo na democracia, ou que alguém seja o “dono” da própria democracia, como parece que virou moda por aí.
O melhor a fazer, em meio à tempestade, é largar um pouco o besteirol, o bate-boca do Twitter e os hooligans, de ambos os lados, e raciocinar sobre reformas e votações no Congresso. Observar o lado em que cada um esteve. Cada um pode ajudar a inocular um pouco de racionalidade em um mundo político que se tornou teatral e algo pueril. Se disser isso por aí e alguém lhe dirigir alguns palavrões, acredite: você está no caminho certo.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 13 de abril de 2022, edição nº 2784