A vida de Cassandra se iguala a de muitos brasileiros. Criada pelo pai e abandonada pela mãe, ela deixou o interior na adolescência, se mudou para São Paulo, viveu de favores de conhecidos, até conseguir, finalmente, alugar a própria quitinete com o salário que ganha como entregadora de aplicativo. Ah, e Cassandra é uma mulher trans negra. A orientação sexual e a cor da personagem vivida pela cantora Liniker são elementos, claro, presentes e relevantes na trama de Manhãs de Setembro, série do Prime Video, da Amazon –, mas as dores da homofobia e do racismo não são o coração da trama que acaba de ganhar uma segunda temporada.
Ambientada no centro da capital paulista, Manhãs de Setembro oferece um olhar afetuoso sobre o dia a dia de seus protagonistas, pessoas comuns, apesar de suas diferenças. A alegria de Cassandra ao se mudar para a quitinete é interrompida pela chegada de Gersinho (Gustavo Coelho), um garoto em busca do pai Clóvis – no caso, Cassandra antes da transição de gênero. O menino adorável e tímido, fruto do breve relacionamento de Cassandra com Leide (Karine Teles), quebra a rotina da motogirl que canta na noite. A relação com o garoto culmina no reencontro de Cassandra com o próprio pai (vivido por Seu Jorge), de quem se afastou ao deixar a pequena cidade onde cresceu. A aposta em conflitos universais é uma das formas de conectar a personagem com qualquer tipo de público. “A Cassandra lida com situações como reconhecimento, afeto e família, temas que atravessam todo mundo”, diz a roteirista e psicóloga Alice Marcone. “Quando temos uma personagem trans cujo arco dramático não tem a ver com a transição de gênero em si, a gente já tira essa história de uma caixa.”
A série da Amazon, dirigida por Luis Pinheiro e Dainara Toffoli, reforça uma onda criativa de produções em alta no audiovisual brasileiro. Ao se instalar na vida de pessoas comuns em camadas mais pobres do Brasil, séries como Manhãs de Setembro e até Sintonia, da Netflix, ou o filme Marte Um, eleito para disputar uma vaga pelo país no Oscar, fogem do retrato das agruras da periferia para dar luz a romances, relações familiares, questionamentos pessoais, entre outros dilemas humanos. Como diz a gíria, são os “corres” dos brasileiros.
Historicamente, os filões mais aclamados do cinema brasileiro – especialmente sob a ótica gringa – são aqueles apelidados de “favela movie” e “árido movie”. Ou seja: filmes na favela e filmes no sertão nordestino, no bom português. Com exemplares belíssimos, a exemplo do estrondoso Cidade de Deus de um lado, e Vidas Secas, marco do Cinema Novo do outro, os dois recortes, em comum, observam camadas sociais baixas do Brasil sob a ótica do medo da violência e da miséria ao redor, caso do clássico adaptado do livro de Graciliano Ramos.
Sintonia, ambientada numa comunidade paulistana, não foge da característica violência do tráfico de drogas e da corrupção policial, mas faz isso de forma tangencial. Seu tema principal é o amadurecimento de três amigos adolescentes que cresceram ali e, mesmo limitados por questões sociais, batalham por seus sonhos sem esmorecer. Caminho parecido com a trama de Marte Um, sobre uma família periférica de Belo Horizonte, em fase de ascensão para a classe média: a mãe faxineira e o pai porteiro observam os voos antes inimagináveis dos filhos, uma jovem estudante de direito e um garoto que sonha em ser astrofísico.
Esse olhar tem em sua base uma razão aparentemente óbvia. Por suas características de mercado, com trabalhos esparsos e pagamentos tardios, o meio do audiovisual brasileiro era lugar comum de profissionais de classes mais altas no país. Nos títulos citados, todos são fruto da presença de pessoas que se igualam aos seus personagens. Sintonia é parte do amplo portfólio do rapper Kondzilla, criado na periferia do Guarujá. A mesa de roteiristas de Manhãs de Setembro tem pessoas de diferentes etnias e orientações sexuais, com destaque para Alice, que é uma mulher trans vinda do interior – jornada feita por Cassandra. Já Marte Um é dirigido por Gabriel Martins, um rapaz negro também emergente. “Esse filme é uma reivindicação sobre personagens negros no Brasil”, disse Martins a VEJA. “São pessoas complexas, que erram e acertam. Que não necessariamente são ligados com o crime ou lugar de violência, mas que também não são idealizados de outra forma, são humanos.”