Na adolescência, Walter Salles se tornou amigo de Ana Lúcia Paiva. Logo se viu acolhido por toda a família, formada pelos pais da amiga, Rubens e Eunice, e seus quatro irmãos — entre eles, Marcelo, que se tornaria escritor na vida adulta. Salles testemunhou de perto a mudança (emocional e física) do clã após a prisão de Rubens, um engenheiro e ex-deputado, por agentes da ditadura militar: assassinado sob tortura, ele nunca foi encontrado, e a família deixou o Rio de Janeiro rumo a São Paulo. Em 2015, com a publicação do livro Ainda Estou Aqui, de Marcelo, Salles entendeu a profundidade do que havia acontecido com o clã. Tocado pelo relato de sobrevivência dos amigos, o diretor adaptou a história no filme de mesmo nome que acaba de chegar aos cinemas, com Fernanda Torres e Fernanda Montenegro dividindo o papel de Eunice, e Selton Mello como Rubens. A VEJA, ele conta quais cuidados tomou ao retratar nas telas um drama tão pessoal e doloroso da vida real.
O filme foi rodado de forma cronológica, sendo assim, o elenco experimentou a mudança brusca de rotina que os Paiva sentiram quando Rubens foi preso. Quais lembranças tem daquele momento? Para todos aqueles que tinham conhecido a família Paiva e a casa que eles alugavam no Leblon, janelas e portas sempre abertas, foi um choque ver a casa subitamente trancada. Minha melhor amiga disse que algo grave tinha acontecido, mas demoramos para entender a imensidão da perda. Rubens Paiva era um homem de bem com o mundo, solar e comunicativo, a última pessoa que nos parecia correr perigo. Ziraldo, pai da nossa produtora Daniela Thomas, foi preso um pouco antes de Rubens, ficou incomunicável durante 3 meses, e foi solto. Tivemos esperanças por vários meses, em vão. A prisão e o assassinato de Rubens Paiva marcaram uma escalada brutal da violência de um regime que já estava armado até os dentes.
Você e o Marcelo se conhecem há anos, mas quando leu o livro Ainda Estou Aqui pela primeira vez se lembra do que sentiu em relação ao que sabia ou não do amigo? O livro de Marcelo descortinou várias camadas que eu desconhecia da história da família. Ampliou meu entendimento do que havia acontecido não só nos anos 70, mas nas décadas que se seguiram. Marcelo reabriu aquela casa, me fez lembrar de tantas coisas que haviam permanecido obscuras para mim. E ao centrar a narrativa na personagem extraordinária de Eunice, ele abriu a possibilidade de falar da ditadura através do microcosmo de uma família.
Qual foi sua maior preocupação em relação a fazer esse filme e o cuidado com a família e a história de Eunice? Ouvir. Admiro relatos que mostram como o mesmo fato pode ser vivido de forma diferente, dependendo do narrador. Rashomon de Akira Kurosawa é um exemplo desse tipo de percepção, a peça A Cada um a Sua Verdade de Pirandello também. As irmãs de Marcelo, Veroca, Eliana, Nalu, Babiu nos deram entrevistas preciosas, e muito do que elas nos disseram acabaram influenciando cenas do filme. O mesmo aconteceu com personagens da história nos anos 70, como Dalal Achacar, e mais recentemente com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, que não só deu informações fundamentais sobre o papel de Eunice na defesa dos povos originários para nossos roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega, como também nos guiou durante a filmagem da aula que Eunice dá na USP.
Como foi receber a reação deles com o filme pronto? O melhor presente de todos. Para Nanda, dona Fernanda, Selton, para cada ator que representou uma personagem da família ou os amigos da família, a reação de Marcelo e suas irmãs era o que mais nos importava. Tentamos fazer um filme com a mesma honestidade do livro do Marcelo, e foi importante que ele tenha sido percebido dessa forma.
Ainda Estou Aqui reforça uma onda de filmes recentes sobre a ditadura militar brasileira, tema que vai e volta, mas ganhou novo significado pós-governo Bolsonaro. Como vê seu filme nesse momento, tanto do cinema brasileiro quanto do clima político do país? O cinema brasileiro ofereceu múltiplos reflexos desse período nos últimos anos. No documentário, filmes de extrema sensibilidade como Fico te Devendo uma Carta do Brasil, de Carol Benjamin, ou Os Setenta, de Emilia Silveira, entre outros, me marcaram bastante. Na ficção, gosto de Nunca Fomos Tão Felizes, de Murilo Salles, mas também dos filmes que falaram da batalha contra a ditadura na linha de frente, como o fizeram recentemente Lucia Murat e Wagner Moura. É um cinema político que tem em A Batalha de Argel, de Gillo Pontercovo, um filme que admiro, a sua melhor fonte. E aguardo ansiosamente O Agente Secreto, o novo filme do diretor excepcional que é Kleber Mendonça Filho sobre os anos de chumbo, assim como o filme que Flávia Castro prepara sobre Herbert Daniel, que foi ao mesmo tempo um combatente nas trincheiras e na luta contra todas as formas de preconceitos. Ainda Estou Aqui é um grão de areia no meio desse universo tão amplo, apenas um reflexo possível daquele tempo traumático. É um período que precisa ser documentado da forma mais polifônica possível, para entendermos melhor o nosso passado, mas também o nosso presente e nosso futuro.
Ao apresentar o filme fora do país, percebe que as pessoas conhecem pouco ou bastante desse período político brasileiro? Tem alguma história que lhe marcou de algum espectador? Vários espectadores sabem que a América do Sul foi um laboratório da guerra fria, que impôs regimes ditatoriais em boa parte do continente nos anos 60 e 70. Já os espectadores mais jovens têm uma imensa curiosidade sobre aqueles anos. Muitas vezes fui surpreendido por pessoas que me disseram algo que não esperava. “O início do filme me lembrou a minha infância em Mumbai”, me disse um jovem indiano. Um italiano me disse o mesmo da sua adolescência na periferia de Roma. Numa das exibições em Nova York, um jovem escritor veio nos dizer que, graças ao filme, tinha entendido melhor o significado da perda e da ausência de uma pessoa da família. E revelou: “Perdi meu pai no atentado das Torres Gêmeas”. O filme se relaciona de formas diferentes com cada espectador, talvez mais do que os filmes anteriores que realizei.