O inimigo mora ao lado e é belo, carismático e pai de família. Em Armadilha, novo filme do autor M. Night Shyamalan, o serial killer mais procurado de toda a Filadélfia parece ser só um paizão que quer levar a filha pré-adolescente ao show de sua popstar favorita, a artista fictícia Lady Raven, vivida pela filha do diretor, Saleka. Quando chega lá, porém, Cooper (Josh Hartnett) nota um número excessivo de policiais armados, um clima tenso no ar e uma agente especial soturna que perambula pelo estádio. Os sinais insistentes mexem com seus nervos e denunciam: por trás dos holofotes e das milhares de garotas da Geração Z, a situação é uma elaborada ratoeira, e ele é o roedor prestes a ter a cabeça esmagada. Estreia da última quinta-feira, 8, o suspense é a nova e intrincada passagem de Shyamalan por elementos típicos de sua filmografia, como o horror e famílias em apuros — e, mesmo dentro da zona de conforto, resulta em algo surpreendente.
A premissa agrega algo de inesperado na rota de um diretor que ficou conhecido por personagens complexos, mas inequivocamente virtuosos, como o herói relutante de Corpo Fechado, o pastor em crise de Sinais ou o psicólogo de O Sexto Sentido. Mesmo em face da violência e fatalidade de suas ideias, afinal, Shyamalan sempre acreditou na bondade humana — mas também defendeu a liberdade excêntrica da ficção, coisa que Armadilha deixa mais claro que nunca. Para não enveredar pelos questionamentos morais, ele se fixa no carisma de Hartnett e num humor que se aproveita do contraste entre paternidade e sociopatia, dos cacoetes da música pop juvenil e de arquétipos do suspense advindos de Psicose para deixar o público favorável ao assassino sanguinolento que já vitimou mais de dez civis inocentes.
É verdade que o humor pode parecer acidental caso levado muito a sério, ou extravasar para momentos enervantes. Tão dramáticos quanto os demais textos do cineasta, os diálogos se saem melhor na boca dos experientes Josh Hartnett e Alison Pill — sua esposa à beira de um ataque de nervos — e acabam desengonçados na voz da estreante Saleka, que se aventurou na atuação por conta do pai, mas se dedica apenas à música. Desafinadas como essa incomodam, mas são compensadas pelo desempenho do protagonista e pelo trabalho de câmera deslumbrante elaborado por Shyamalan junto ao diretor de fotografia Sayombhu Mukdeeprom (de Rivais e Suspiria: A Dança do Medo).
Assim, em meio a peripécias dignas de MacGyver e risadas em abundância, surge o coração pulsante do filme. Pai de três meninas, Shyamalan se coloca no lugar de Cooper e inverte a lógica de sua típica defesa da humanidade para atribuir valor às qualidades obscuras que seus heróis costumam combater. Sociopata desde criancinha, o personagem é habituado a copiar e fingir todas as emoções humanas, mas, à medida que o cerco se fecha ao seu redor, descobre sensações próprias como o medo, a raiva e — ao seu modo — o afeto familiar.
Em essência, Cooper é mais um serial killer criado para ser amado e apoiado, do mesmo jeito que se espera que Hannibal Lecter sempre se safe para continuar a deliciar seus fãs. É um dos dilemas eternos do terror e do suspense, que jamais deixarão de ser acusados de glorificar a capacidade humana de destruição. Eis aqui uma boa proposta: que a ficção lide com ímpetos condenáveis, imagens macabras, segredos repreensíveis e emoções espinhosas, mas que haja emoção. Repleto dela, Armadilha é hilário, tenso, ousado e mais humano do que permitem os parâmetros do realismo — como os melhores acertos do diretor em sua atual fase.
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