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M. Night Shyamalan: ‘Tentaram matar o cinema, mas não conseguiram’

O diretor de O Sexto Sentido e Fragmentado vê as redes sociais como fonte de angústia e celebra a resistência da tela grande

Por Thiago Gelli Atualizado em 26 jul 2024, 12h31 - Publicado em 26 jul 2024, 06h00

Mestre das reviravoltas e do sobrenatural, M. Night Shyamalan, 53 anos, se consagrou em Hollywood com a engenhosa história de um menino médium — o fenômeno O Sexto Sentido, que o levou ao Oscar em 2000. De lá para cá, virou referência da cultura pop e dirigiu mais treze filmes, sempre fiel à própria visão e indiferente às reações polarizadas a histórias como Sinais ou A Vila, que refletiam a crise do sonho americano e os medos que afligem qualquer família nuclear. Hoje, novos pesadelos se unem aos antigos em suas produções: as redes sociais, a desesperança global, as ameaças à indústria do entretenimento. O cineasta indo-americano volta a tais temas em Armadilha, thriller que estreia em 8 de agosto, protagonizado por um serial killer encurralado com a filha num show de música pop. A VEJA, Shyamalan fala sobre as angústias reais que inspiram seus filmes, a capacidade de resistência do cinema e os desafios trazidos pela tecnologia.

Como muitos de seus filmes, Armadilha parte de uma relação entre pai e filha. O que tanto o cativa na dinâmica familiar? A família é para onde canalizo minha energia. Me casei aos 22, tive três meninas e continuo no mesmo núcleo há trinta anos. Quando escrevo, o medo que vem à tona é o da desintegração dessa família, de não poder protegê-la ou evitar acidentes e afastamentos. É o que me deixa ansioso. Todas as meninas em minhas histórias costumam ser versões de minhas filhas, e todas as suas dinâmicas com adultos traduzem minha relação com elas. Se não fosse um cara família, estaria só fazendo filmes em que solteirões vão a encontros ruins e são atacados por aliens.

No geral, seus longas têm um público adulto, em contraste com a onda de franquias de super-heróis e tramas infantojuvenis. Quais são os maiores desafios na indústria hoje? Gostaria de começar dizendo que cinemas são ótimos e incrivelmente saudáveis, mas a verdade é que o streaming tentou nos matar. A América corporativa acreditou que as plataformas eram o caminho certo e que as salas de exibição deveriam acabar, mas isso felizmente não aconteceu. Aí, chegou a covid e a mãe natureza redobrou o ataque, dando a eles uma noção falsa de que estavam certos. Como estávamos todos em casa, não havia o que fazer. As greves de 2023 foram o terceiro golpe. Hoje, estamos de volta e creio que as pessoas continuarão indo aos cinemas. Mas trabalhamos com uma economia da atenção, e o jeito de atraí-las mudou.

Em que sentido? O desafio cada vez maior é fazer um filme se destacar na divulgação, para que o público saiba que está chegando aos cinemas. Se há um “2” ou “3” acompanhando o título, a memória é imediata. Mas precisamos fazer com que os espectadores atentem a universos que ainda desconhecem. É traiçoeiro, porque os estúdios sabem que é mais fácil se garantir com uma franquia. Ainda assim, tenho fé de que Armadilha e outras histórias originais terão uma chance de serem vistas.

“A família é para onde canalizo minha energia. Quando escrevo meus filmes, o medo que vem à tona é o da desintegração dessa família, de não poder protegê-la. É isso que me deixa ansioso”

Além do streaming, a inteligência artificial é vista como ameaça ao cinema. Qual sua opinião a respeito dela? Por natureza, sou contra repetir algo que já tenha sido feito ou copiar informações preexistentes. Odeio até quando me sugerem fazer uma sequência de um dos meus filmes. Acho a ideia insuportável. Sou um cara da velha guarda, filmo em película, planejo meus quadros à mão e pago pelos meus filmes originais. Pensar que digitar “filme do M. Night Shyamalan” em um programa pode gerar algo similar a Armadilha me assusta, mas — ainda bem — a humanidade fareja humanidade. Minhas imperfeições são o que me fazem. A versão polida da IA sempre será pálida.

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A esperança é elemento constante de seu trabalho. Tem sido difícil mantê-la viva? De quinze anos para cá, os problemas de saúde mental explodiram, e isso é um resultado direto da onipresença das redes sociais em nossa cultura. Os celulares roubaram o direito de existir como existíamos. Quando eu era criança, montava em uma bicicleta e ia à casa do meu amigo para checar se ele podia brincar. Se não podia, me sentava na grama e esperava por ele lá, sem ter nada para fazer além de aguardar. Uma situação que, hoje, parece artificial. O dom de estar onde estávamos — de maneira física e real — foi arrancado de nós. Passamos por um momento de sofrimento generalizado. Não fomos feitos para viver assim. Precisamos de esperança, então, conto histórias de pessoas que vivem na escuridão, lutam contra ela e encontram algo de bom em suas circunstâncias.

Desde as duas indicações ao Oscar por O Sexto Sentido, seu trabalho tem dividido opiniões. A pressão para se superar é um peso? Vejo e vivo minha carreira de um jeito diferente da percepção exterior. No mesmo ano em que fiz O Sexto Sentido, dirigi Corpo Fechado, que para mim é um filme melhor. Meu trabalho é pensar em personagens e impulsionar o cinema e minha própria visão da arte o máximo que posso. Me desafio constantemente, sem pensar se estou sendo totalmente aprovado ou não pelo público e pela crítica. O que importa é ter a mesma sensação que tive aos 30 anos, quando decidi fazer Corpo Fechado. Não existiam filmes de quadrinhos na época, então, tanto os espectadores quanto os estúdios ficaram confusos. Mas eu sabia que ele reverberaria. Ninguém deve se vender para ser aceito.

Nenhum de seus filmes foi indicado ao Oscar desde então. O senhor enxerga um preconceito da academia, ou prefere estar de fora desse mundo? Adoro quando as pessoas chegam a mim achando que tenho toneladas de prêmios, mas a verdade é que não sou facilmente tentado e nunca me venderei. Todos queremos aprovação, mas sucesso para mim é saber que retratei personagens com honestidade e justiça. Por outro lado, a fantasia é, com certeza, a ovelha negra da indústria. Não a enxergam como comparável à arte de outros gêneros. Aproveito isso para tecer trabalhos incrivelmente desafiadores. Desse jeito, posso extrair a melhor atuação do ano e trabalhar no nível técnico mais alto sem pensar nas reações do público. Faço arte pela arte. É uma liberdade muito bonita, sou feliz no meu nicho.

Embora aborde a religião em Sinais, Batem à Porta e outros, o senhor nunca endossou uma crença ou fez um filme explicitamente religioso — filão muito lucrativo. Por que prefere a discrição ao tratar disso? Vejo a religião como apenas mais uma mitologia a ser empregada, assim como os alienígenas ou outras figuras místicas populares. Pego sua estrutura narrativa emprestada e, então, tento fazer algo novo com isso. É uma excelente ferramenta, porque começar do zero e escrever tudo do começo ao fim, sem base referencial, é muito mais difícil e demanda tempo.

Em A Dama da Água, o senhor interpreta o escritor de um livro que irá mudar o rumo da humanidade para melhor. Na sua opinião, quais ensinamentos estariam em uma obra assim? Esse filme, para mim, é sobre artistas. Nele, me apoiei na ideia profunda de que alguém pode escrever algo que outra pessoa irá ler, absorver e mudar o mundo. Nunca sabemos qual será nosso impacto na humanidade. Você talvez não revolucione a sociedade, mas alguém pode ser impactado por sua existência e transformá-la. É por isso que também tento nunca ser cruel. Uma pessoa agredida pode influenciar diversos elementos fora de nosso controle. Nós, artistas, temos a autonomia e o poder de fazer coisas incríveis.

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Sinais imagina uma invasão alie­nígena plausível e fundamentada. Acredita que existe vida extraterrestre? Sim, com certeza há vida lá fora. O contrário é matematicamente impossível. Será que faremos contato? Será que já fizemos? Como esse encontro pode ser? Existe muito na ciência que não compreendemos. Quando leio sobre física quântica, por exemplo, minha mente explode. Imagino que as interações entre nós e os extraterrestres ocorrerão em um grau que ainda nos é incompreensível. Provavelmente, não acontecerão do jeito que estamos acostumados a ilustrá-las. Não teremos espaçonaves e criaturas pequeninas correndo por aí. É possível que seja assim, mas provavelmente isso se dará em outro plano do qual não temos ciência.

“De quinze anos para cá, os problemas de saúde mental explodiram, e isso é resultado direto da onipresença de redes sociais em nossa cultura. Os celulares roubaram o direito de existir como existíamos”

Em Armadilha, a pop star que se apresenta no palco é interpretada por sua filha Saleka. Outra filha sua, Ishana, acaba de dirigir seu primeiro longa, Os Observadores. Como é a dinâmica criativa dentro de sua família? Em nossa casa, só falamos sobre arte, desde que elas eram bebês. Elas foram treinadas em várias áreas, como piano e balé. E sempre fiz questão de discutir com minhas filhas sobre a relação entre natureza humana e arte — o que ela significa e como não traí-la.

Como encara as críticas de quem as vê como típicas nepo babies de Hollywood? Não é usual, claro, ter a aprendizagem que elas tiveram. Mas, se olharmos para Saleka, ela foi para uma área que não é a minha: a indústria musical. Assistir à sua ascensão do piano clássico ao jazz tem sido incrível. Ela já tem 27 anos, então não estou sendo seu mentor. Ela é uma artista completa com a qual trabalho. Agora quem aprende com elas sou eu. Minhas filhas reacendem minha chama criativa. Para mim, é um prazer testemunhar a transição de ambas à vida profissional. Elas me lembram que é preciso ousar, porque são muito ousadas. Quem é o líder agora em casa? Já não sei dizer.

Armadilha trata de um assassino em série, figura clássica do horror. É correto dizer que seus filmes se filiam ao gênero? Acho que qualificar meus filmes meramente como terror é um pouco equivocado. Se tangencio o gênero por cinco ou dez minutos, a obra toda automaticamente é chamada de horror, mas o que faço é misturar gêneros. A magia vem dessa alquimia. Quando encontro um grupo numa festa, dez pessoas vêm me dizer que amam meus filmes, até uma outra declarar que não assiste a eles por ter medo dos sustos. Minha resposta para isso é dizer que o medroso está perdendo os 90% restantes do filme que não são assustadores. Para mim, o intuito de um filme não é amedrontar, mas comover. Quero brincar de ioiô com meus espectadores, levá-los da comédia ao pavor e à catarse, de jeitos divertidos e inesperados.

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Publicado em VEJA de 26 de julho de 2024, edição nº 2903

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