A Folha de S. Paulo, em sua edição do dia 30 de março, na página de Opinião (Tendências/Debates), publicou dois artigos que respondem à pergunta “A rede pública de ensino deve priorizar o método fônico de alfabetização?”
Um dos artigos publicados é meu, e o outro, do presidente da Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação), Alessio Costa Lima.
Recebi do José Morais, um dos mais importantes e prolíficos cientistas da área de alfabetização, o texto abaixo, autorizado para publicação neste blog. José o escreveu após ler os dois artigos na Folha.
Aviso ao leitor: a linguagem é forte, cheia de sabedoria e ironia. Mantive a grafia lusitana original para não alterar o sabor.
Sobre a loucura da ciência da leitura
Por José Morais (especial para este blog)
Pois é! Felizmente que no Brasil se pratica, desde há muitos anos, a descoberta da leitura pela criança. Se o Brasil foi descoberto por portugueses mal letrados, por que se haveria de ensinar as letras às crianças?
Nós temos a nossa sabedoria sensata, judiciosa! O que temos dito e repetido? Que o ensino deve ser baseado no pluralismo de concepções. Que a definição de um método de alfabetização decorre do conhecimento e da vivência do professor, o qual deve ter autonomia pedagógica. Que a alfabetização é um conjunto de saberes, e que o melhor método é o que é utilizado com segurança pelo professor. Sempre em frente, avançando!
Na ciência não se pode confiar. Já os gregos diziam que os deuses fabricaram o olho para que o “fogo visual” saia dele sob o efeito da luz e vá ter com as letras para identificar a sua forma. Galeno acrescentou-lhe um fluido interior que o olho enviava ao cérebro por meio de um nervo. Aristóteles percebeu que se pomos o objeto em contato com o olho não vemos nada, tem de haver um intermediário que é o diáfano, e assim o objeto transmite ao olho a sua forma, mas não a sua matéria, o olho restitui as cores, e a alma vê.
Muito mais tarde o persa Ibn Alhazen compreendeu que o olho é o receptor dos raios luminosos e que por isso pode ser ferido por uma luz demasiado intensa. Mais uns séculos e Da Vinci percebeu que a pupila aumenta ou diminui segundo a menor ou maior luminosidade dos objetos. Finalmente Kepler descobriu que a retina é um receptor sensorial, que a íris funciona como um diafragma e o cristalino como uma lente convergente). Mas, que assombro! durante toda esta história houve quem tivesse aprendido a ler. Sem a ciência! Maravilha, é, não é? As pessoas liam, qualquer que fosse a teoria sobre a relação entre as letras, o olho e o cérebro.
De há um século e meio para cá também muito se tem aprendido sobre o que se passa no cérebro entre a sua ativação pela sequência de letras das palavras e a compreensão das intenções, aparentes ou disfarçadas, que gênios como Cervantes e Shakespeare têm vertido em texto (e Deus, que escreveu a nossa Santa Bíblia!). Mas para quê essa ciência da leitura se tudo está no papel e na mente? Para quê comparar a eficácia das diferentes maneiras de ensinar a ler e escrever? Todos os métodos são bons! O professor é que sabe! Mais do que pretende a ciência da leitura. Aliás, para curar doentes, todas as terapias são boas! O médico sabe mais do que a ciência, ele olha, escuta e só depois intervém. Se o paciente morre é porque tinha de morrer! E se a criança não lê é com certeza porque não se deixou o professor utilizar o método que lhe convinha, para que ela nascera já fadada!
Na França, em 1998, a Comissão científica do Observatório da Leitura, que incluía cientistas de várias disciplinas, publicou um relatório em que figurava esta afirmação dramaticamente dogmática: “Podemos afirmar que a concepção do ensino da leitura mais proveitosa (…) é a que insiste na descoberta precoce do principio alfabético, isto é, do fato de os caracteres alfabéticos representarem ou tenderem a representar, sob forma gráfica, as unidades abstratas chamadas fonemas. (…) No quadro de uma concepção essencialmente fônica, são ainda necessários estudos que ponham em evidência os procedimentos mais apropriados.” Fonemas? Duendes, talvez! E que aparente modéstia sob a insolente audácia!
Acrescentava o relatório, com soberba petulância: “O Observatório não apela à liberdade pedagógica do professor. Esta liberdade é muitas vezes ilusória (…). O Observatório pode e deve dizer claramente de que lado ele pensa que se situa, no domínio da aprendizagem da leitura, a verdade científica. (…) Convidamos os inspetores escolares, os formadores de mestres, os pais, a analisarem de maneira crítica, mas sem preconceito o conjunto dos dados que expusemos ». Que desaforo!
Essa crença terá transtornado a mente de um grupo de pretensos pesquisadores franceses que, em desvario, chegou a afirmar que no fim do 1° ano da escola primária as crianças submetidas ao método fônico já compreendiam e escreviam textos com 20 pontos de vantagem (numa escala de 0 a 100) sobre as que se iam “letrando” a elas mesmas sob o olhar sábio dos seus professores, e que essa vantagem chegou a 35 pontos quando pertenciam a famílias de baixo nível cultural. Insanidade! Delírio! Psicose!
O que é preciso é espontaneidade. Leitura é tão natural como o ato de beber água. Deixem as crianças beber a fala que escorre dos livros! Protejamos as cabecinhas azul e rosa das conspirações urdidas pela ciência, porque esta, sob a manta enganosa da inteligência e da transparência, ora é negra ora é vermelha!
Sobre José Morais
O pesquisador português José Morais é um dos maiores especialistas do mundo em alfabetização e um profundo conhecedor da educação brasileira. Ao longo das últimas décadas, contribuiu ativamente para políticas educacionais na França e em Portugal e, recentemente, acompanhou de perto as discussões em torno da Base Nacional Curricular Comum do Brasil.
José Morais é professor emérito da Universidade Livre de Bruxelas, onde lecionou psicologia cognitiva, psicolinguística e psicologia da alfabetização. As consequências cognitivas da alfabetização, a aquisição da leitura e os mecanismos de reconhecimento de palavras são seus principais temas de investigação.