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‘Dois Papas’: a verdade e a ficção no filme da Netflix

A amizade (quase) imaginária entre Francisco e Bento XVI conduz o longa indicado ao Oscar

Por Amanda Capuano Atualizado em 24 jan 2020, 15h52 - Publicado em 23 jan 2020, 18h15
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  • Foi durante uma viagem a Roma que o produtor e roteirista Anthony McCarten foi acometido pelo insight: a humanidade, hoje, coexiste com dois papas vivos. A raridade da situação o levou a imaginar como seria uma amizade entre Jorge Bergoglio, o papa Francisco, e seu antecessor, Joseph Ratzinger, Bento XVI — o primeiro a renunciar ao papado em quase seis séculos. Das divagações nasceu Dois Papas, filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, lançado pela Netflix — e livro homônimo publicado no Brasil pela Best-Seller, selo da editora Record.

    O longa foi indicado ao Oscar de melhor roteiro adaptado e melhor ator e ator coadjuvante, para Jonathan Pryce e Anthony Hopkins, que interpretam Francisco e Bento XVI, respectivamente.

    Confira o que é verdade e o que é ficção na obra:

    Os bastidores do conclave de 2005

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    Jonathan Pryce como Jorge Bergoglio, em cena do conclave de 2005, no filme ‘Dois Papas’ (Divulgação/VEJA)

    Informações sobre os conclaves são extremamente raras, já que a cerimônia que elege o papa é restrita aos cardeais votantes e está envolta em segredos. Em setembro de 2005, no entanto, um clérigo anônimo rompeu seu voto de sigilo e revelou à revista italiana Limes o que aconteceu dentro da Capela Sistina, em abril daquele ano. Assim como retratado no longa, o placar da primeira rodada apontou Ratzinger em primeiro com 47 votos, seguido por Bergoglio, com 10, e pelo italiano Carlo Maria Martini, com 9. Não há registros, no entanto, de que Martini tenha feito negociações para transferir seus votos para Bergoglio, como sugere o filme: mas o placar da segunda rodada (que não foi exibido na produção) indica que Bergoglio recebeu 25 votos a mais do que na anterior, enquanto o italiano perdeu adeptos e não voltou a aparecer entre os favoritos ao papado. O filme, no entanto, acelera a eleição de Bento XVI ao mostrar apenas três rodadas de votação — ele foi eleito após a quarta.

    A longa conversa entre Bento XVI e Francisco

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    Anthony Hopkins e Jonathan Price em imagem promocional do filme ‘Dois Papas’ (Divulgação/VEJA)

    A maior parte de Dois Papas é calcada na imaginação do roteirista Anthony McCarten sobre como seria uma longa conversa entre duas pessoas completamente opostas, mas que compartilham a mesma fé. Assim sendo, todos os diálogos entre os dois atores são do campo da ficção — amparados, claro, por uma extensa pesquisa sobre a personalidade dos protagonistas. Não há registros de que os coleguinhas tenham se encontrado na casa de veraneio de Bento XVI antes de sua renúncia. Também é extremamente improvável que Ratzinger tivesse Bergoglio como o seu sucessor favorito. O autor Gerard O’Connell, no livro A Eleição do Papa Francisco, aponta que o preferido de Bento XVI para sucedê-lo era o Arcebispo de Milão, Angelo Scola. 

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    Bergoglio na fila do INSS 

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    Na cena, Bergoglio recebe carta do Vaticano e decide viajar a Roma para cobrar a aprovação de sua aposentadoria (Divulgação/VEJA)

    Depois do conclave de 2005, Bergoglio revela a um dos cardeais no filme que planeja se aposentar e viver como um simples pároco na Argentina. Por volta de 2012, quando tinha 75 anos, ele começa a pedir insistentemente a autorização do papa para sair de cena — pedidos ignorados por Bento XVI. De acordo com o Direito Canônico, todo bispo deve, obrigatoriamente, apresentar a sua renúncia — que pode ou não ser aceita pelo papa — quando atinge os 75 anos de idade. Eduardo García, bispo auxiliar de Buenos Aires e amigo próximo de Bergoglio, em entrevista ao site Rome Reports, falou sobre os reais planos de aposentadoria de Francisco: “Uma vez aceita a sua renúncia e nomeado o seu sucessor, ele planejava viver em uma casa em Buenos Aires para sacerdotes idosos e enfermos. Ele também poderia ter seguido o caminho de conselheiro de espiritualidade, celebrando missa nas paróquias”. Bergoglio, no entanto, nunca foi a Roma cobrar que Bento aprovasse a sua aposentadoria — nem há registros de que ele tenha atormentado o pontífice com diversas cartas.

    Bento XVI e seu talento musical

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    O ator Anthony Hopkins, como Bento XVI, em cena ao piano no filme ‘Dois Papas’ (Divulgação/VEJA)

    Em uma bela cena do longa, Ratzinger toca piano para Bergoglio enquanto conversam em sua casa de veraneio. O papa emérito é, de fato, um amante da música clássica e exímio pianista. O disco de Ratzinger, citado por Bergoglio no filme, também é real: se chama Alma Mater, e foi lançado em 2009. Também é verdade que o álbum foi gravado no Abbey Roadlendário estúdio onde os Beatles gravavam, em Londres. Os registros de Ratzinger ao piano, no entanto, são raros, mas um vídeo antigo disponível no YouTube dá aos fiéis uma palhinha de seus dotes musicais. Um detalhe curioso: Anthony Hopkins também arrasa no piano — é ele mesmo quem toca o instrumento nas cenas.

    Santíssima Copa do Mundo

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    Ratzinger e Bergoglio assistem à final da Copa do Mundo, entre Alemanha e Argentina, em cena de ‘Dois Papas’ (Divulgação/VEJA)
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    Em uma divertidíssima cena, os dois clérigos assistem ao confronto entre Alemanha e Argentina na final da Copa de 2014. Francisco é um amante do futebol e assíduo torcedor do time argentino San Lorenzo, mas a cena não passa de uma brincadeira do diretor. “Os dois não assistiram à final juntos. Certamente, o Francisco deve ter assistido, mas ouvi dizer que o Bento foi dormir. A cena do filme é uma licença poética, eu não podia perder a piada”, revelou o diretor Fernando Meirelles. Ainda, segundo o cineasta, foi tudo puro improviso. “O Jonathan Pryce tem alguma noção de futebol, mas não é um torcedor, e o Anthony Hopkins acho que nunca assistiu a um jogo na vida. Deixamos eles improvisarem”.

    Bergoglio segue padre misterioso — e termina noivado

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    O jovem Jorge Mario Bergoglio (Juan Minujín) dança com a namorada em cena de ‘Dois Papas’ (Divulgação/VEJA)

    No filme, Bergoglio anda pelas ruas quando vê um padre misterioso. Ele o segue até o interior de uma igreja e se confessa. A conversa faz com que o jovem argentino aceite sua vocação e decida seguir para o seminário. Em relato ao biógrafo Austen Ivereigh, Francisco revelou que passava diante da igreja de San José de Flores quando teve uma vontade súbita de se confessar. “Foi uma dessas sensações que você não entende. Vi um padre andando por perto, mas não o conhecia, não fazia parte da paróquia. Ele se sentou num dos confessionários e não sei bem o que aconteceu depois, parecia que alguém havia me puxado e me levado ao confessionário…. Naquele instante eu soube que queria ser padre”, reproduziu Ivereigh no livro A Grande Reforma: Francisco e a Jornada de um Papa Radical (em tradução livre).

    No longa, Bergoglio encerra o noivado após a confissão. Na vida real, no entanto, não havia uma noiva. Amalia Damonte  — retratada como noiva do jovem Bergoglio — existiu, mas o romance entre os dois aconteceu durante a pré-adolescência e logo teve o fim decretado pelos pais da menina. Em entrevista após o Conclave de 2013, Amalia contou que Bergoglio, então com 12 anos de idade, escreveu-lhe uma carta afirmando que se não se casasse com ela, tornaria-se padre. O papa, porém, revelou no livro Conversas com Jorge Bergoglio (Verus) que teve um relacionamento amoroso na juventude, mas a vocação religiosa foi mais forte. “Era de uma turma de amigos com quem íamos dançar”, contou sobre a moça, sem citar nomes. 

    Bergoglio e a ditadura na Argentina

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    Cena de ‘Dois Papas’ retrata Jorge Bergoglio (de costas) em encontro com oficiais durante a ditadura argentina (Divulgação/VEJA)
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    Os produtores do filme recorrem a flashbacks para narrar a controversa relação entre o jovem Bergoglio e a violenta ditadura na Argentina, entre 1976 a 1983. Ao contrário de outros colegas jesuítas, que se posicionaram fortemente contra o regime, Francisco permaneceu em cima do muro, e chegou a se aproximar das autoridades, ao mesmo tempo que ajudou muitas pessoas perseguidas a fugirem do país. Duas tramas se destacam: sua amizade com a bioquímica e ex-chefe Esther Balestrino e a prisão dos cardeais Jalics e Orlando Yorio, torturados pelo regime.

    Esther teve a filha sequestrada, o que fez dela uma das pioneiras no movimento Mães da Praça de Maio. Bergoglio tentou ajudar a amiga — ele chegou a esconder livros que ela possuía considerados subversivos. Mas Esther teve um fim trágico: sua filha foi solta, mas ela foi capturada e assassinada pelos militares.

    Já a história dos padres jesuítas é envolta em rumores. O principal é de que o futuro papa teria avisado aos colegas do perigo que corriam pelo trabalho social realizado nas periferias, mas ambos rejeitaram o alerta. Bergoglio, então, teria contado aos militares que eles não estavam mais sob a proteção da Igreja, o que causou a prisão. Tal versão é refutada pelo pontífice no livro Conversas com Jorge Bergoglio (Verus). Ele afirma ter alertado os colegas, mas diz que eles optaram por permanecer com o trabalho na favela e se desassociaram da Companhia de Jesus, mas não por ordem sua. O filme mescla as duas versões: Bergoglio desassocia Jalics e Yorio da ordem dos jesuítas, deixando-os sem a proteção da Igreja e à mercê do regime, mas não é ele quem avisa os militares. 

    Exílio melancólico

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    Cena de Juan Minujín, ator argentino, como o jovem Bergoglio no exílio em Córdoba (Divulgação/VEJA)

    Assim como mostra o filme, Bergoglio foi relegado a um retiro forçado em Córdoba, interior da Argentina. Apesar de ter ajudado a esconder e a salvar a vida de várias pessoas durante o regime, o pontífice pagou o preço pela proximidade com os militares, que fez com que ele fosse visto como um traidor por uma parcela da população e do clero — fama que carrega até hoje na Argentina. O exílio em Córdoba foi seguido de outro bem mais distante, na Alemanha, para onde ele foi enviado pela Igreja para estudar. O período na Europa, no entanto, ficou de fora do filme.

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    O escândalo de pedofilia e o mordomo de Bento XVI

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    Cena em que Bento XVI conta para Francisco sobre os abusos de crianças cometidos por clérigos da igreja católica (Divulgação/VEJA)

    Ao fim de dois dias de intensa conversa com Franciso, Ratzinger se confessa com ele na Capela Sistina, e revela, de maneira inaudível ao público, que tinha consciência dos escândalos de pedofilia na Igreja. O recurso serve para pincelar no filme a grande polêmica envolvendo o papa na vida real. Assim como retratado na produção, Paolo Gabriele, então mordomo de Bento XVI, vazou documentos sigilosos que revelavam como a Igreja Católica acobertou clérigos que molestaram crianças. Entre os vazamentos, haviam cartas enviadas ao próprio Bento XVI denunciando os abusos. O escândalo estourou em 2012 e é tido como um dos motivos que levou à renúncia do papa no ano seguinte. Oficialmente, porém, o religioso alegou problemas de saúde para deixar o cargo. Não há registros de uma suposta crise de fé engatilhada pela revelação dos abusos, como retratado no filme, nem tampouco de uma confissão feita a Bergoglio. Em seu primeiro pronunciamento sobre o assunto, o então papa, porém, admitiu que a igreja não foi suficientemente “vigilante, veloz e decisiva” na luta contra a pedofilia.

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