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O poeta fingidor

Viagem aos versos e à vida de Fernando Pessoa – e à comida que o deliciou quando morou em Lisboa, sua cidade natal

Por J.A. Dias Lopes Atualizado em 19 fev 2019, 08h16 - Publicado em 18 fev 2019, 13h28

Se Camões não fosse o maior poeta da língua portuguesa, o pódio seria do lisboeta Fernando Antônio Nogueira Pessoa (1888-1935). Trata-se evidentemente de opinião pessoal, com uma legião de apoiadores. Entretanto, embora Fernando Pessoa tivesse consciência da sua estética inovadora, não chegou a desfrutar da merecida honraria. Quando morreu, havia publicado apenas dois livros: 35 Sonnets, em inglês, sua segunda língua, e Mensagem, uma coletânea de poemas sobre os grandes personagens históricos lusitanos.

A obra foi musicada pelo baiano André Luiz Oliveira, com uma primeira gravação em disco lançada em 1986, e cantada por vários brasileiros, como Caetano Veloso, Elizeth Cardoso, Gal Costa, Zé Ramalho e Elba Ramalho, que interpretou o poema O Infante:

Ele acreditava não haver público para seus versos. Devia estar ressabiado ou espantadiço, no dizer dos seus conterrâneos. A revista literária Orpheu, que lançou em 1915 e teve apenas dois números, responsável pela introdução do movimento modernista em Portugal, foi recebida com pedradas pela crítica lusitana. Mesmo assim, seu vanguardismo inspirou movimentos literários que renovaram a literatura do país. Do seu projeto participaram nomes das letras e das artes como Mário de Sá-Carneiro, Almada-Negreiros e Santa-Rita Pintor. O grupo ficou conhecido como Geração d’Orpheu.

Só em 1940, depois da edição póstuma das Obras Completas de Fernando Pessoa, o público descobriu sua genialidade poética. Agora, muita gente conhece e declama, até para mostrar erudição, os versos de Autopsicografia, por exemplo: “O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente./ E os que leem o que escreve,/ Na dor lida sentem bem,/ Não as duas que ele teve,/ Mas só a que eles não têm./ E assim nas calhas de roda/ Gira, a entreter a razão,/ Esse comboio de corda/ Que se chama coração”.

A popularidade de Autopsicografia não veio por acaso. Na observação de um crítico literário, Fernando Pessoa refletiu no verso uma palheta de dores: a que ele fingiu sentir, a que sentiu de verdade ao escrever e a que o leitor sente ao ler o poema, entre outras. O poeta fingidor revelou a mesma subliminaridade em outras criações antológicas. “Amo como ama o amor”, escreveu. “Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?” Pode haver declaração de amor com equivalente intensidade, maior jamais!

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Fernando Pessoa escreveu em seu nome e também nos de vários heterônimos que criou para se expressar literariamente, três dos quais ganharam fama. São personagens distintos, cada um com uma visão particular do mundo. Batizou o trio famoso de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. O motivo dessas despersonalizações, que alguém qualificou de “psicografias sem mediunidade”, seria justamente o fingimento.

Segundo a Enciclopédia Mirador Internacional (Encyclopedia Britannica do Brasil Publicações Ltda., São Paulo, SP, 1982), Caeiro “é poeta das sensações puras, naturalista e cético, hostil às regras métricas e ao vício de pensar”; Reis “é pagão e estoico, neoclássico que escreve odes horacianas de construção elíptica”; Campos “é poeta whitmaniano (relativo a Walt Whitman, poeta americano do século XIX, ou à sua obra) em versos livres, sem a contenção estoica de Reis”.

O poeta ser humano nasceu e viveu em Lisboa, exceto na infância e adolescência, quando morou por nove anos em Durban, na África do Sul, terceira maior cidade do país, em companhia da mãe, dos quatro meio-irmãos e do padrasto, cônsul de Portugal. Foi personagem marcante na capital lusitana do seu tempo.

Era um homem de rosto comprido e mãos delgadas, alto e franzino, de pernas longas e tórax pouco desenvolvido. Caminhava em passos rápidos, usava óculos redondos, com lentes grossas, para corrigir a miopia, fumava cerca de oitenta cigarros por dia. Além disso, tomava diariamente sucessivas xícaras de café e inúmeros cálices de bagaceira, aguardente de vinho com alto teor alcoólico.

Colecionava postais e selos, detestava falar ao telefone e se apavorava com os trovões, dos quais se protegia escondido debaixo de qualquer coisa. Era supersticioso e sonhador, solitário e tímido, embora conquistasse grandes amigos. Sofreu crises de depressão, umas das quais quando a mãe, viúva do seu pai, casou pela segunda vez. Teve uma única namorada, aos 31 anos, e morreu solteiro, aos 47 anos, de complicações hepáticas.

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Um texto de sua autoria, descoberto recentemente, revelou-o misógino, racista e escravocrata, causando indignação nas redes sociais. Se fosse vivo, estaria sob fogo cruzado das ideias politicamente corretas. Intelectuais contemporâneos de Fernando Pessoa também se equivocaram ideologicamente. Ezra Pound (1885-1972), que em princípios no início do século XX, junto com T. S. Eliot, liderou o movimento modernista da poesia no Estados Unidos, simpatizou com o nazismo. O alemão Martin Heidegger (1889-1976), um dos filósofos mais importantes do século XX, filiou-se em 1933 ao partido de Adolf Hitler.

Walter Benjamin, ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo, sociólogo e judeu germânico, calou-se diante dos “processos exemplares” de Moscou contra seus opositores e foi incapaz de criticar o ditador comunista Josef Stalin quando a militante e diretora teatral soviética Asja Lacis, sua amante por algum tempo, que o teria convertido ao marxismo, foi levada para um campo de trabalhos forçados. Não estamos querendo compreender os pecados do poeta lusitano, apenas o registramos com pesar.

Há duas semanas, refizemos as andanças de Fernando Pessoa em Lisboa, visitando inclusive A Brasileira do Chiado, café histórico da capital portuguesa, fundado em 1905 na Rua Garrett, números 120-122, junto ao Largo do Chiado. Na calçada em frente há uma visitadíssima estátua em bronze do poeta, de autoria de António Lagoa Henriques. Coincidentemente, Fenando Pessoa nasceu no mesmo prédio de A Brasileira do Chiado. A escultura o reproduz em tamanho natural, sentado ao lado de uma mesinha, que dispõe uma cadeira vazia para o turista se acomodar e ser fotografado em sua ilustre companhia. Claro, cumprimos essa tradição.

Estátua em bronze do poeta, no Chiado, de autoria de António Lagoa Henriques: a cadeira vazia ao lado é para o turista sentar e ser fotografado em sua companhia (Wikipedia/.)

Na obra de Fernando Pessoa, a comida e a bebida não alcançaram a mesma relevância que tiveram na do seu conterrâneo Eça de Queirós (1845-1900), gastrônomo renomado e um dos mais importantes romancistas portugueses de todos os tempos. Mas o biógrafo Luís Machado, no livro À Mesa Com Fernando Pessoa (Pandora Edições, Lisboa, Portugal, 2001), encontrou nos seus versos referências a comidas. O heterônimo Campos, por exemplo, disse em um poema: “Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,/ Serviram-me o amor como dobrada (dobradinha) fria./ Disse delicadamente ao missionário da cozinha/ Que a preferia quente,/ Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria”.

Machado reconstitui suas preferências à mesa em cafés a restaurantes frequentados pela nata da intelectualidade lisboeta. No La Gare e A Brasileira do Chiado, o poeta saboreava ovos e suculentos bifes – uma moda na época. Capital do bife, Lisboa até hoje coleciona receitas antológicas da especialidade. Duas foram exportadas para os países de colonização portuguesa: o Bife de Cebolada, batizado de Bife Acebolado no Brasil; e o Bife Com Ovos a Cavalo, que em nosso país denominamos Bife a Cavalo, embora o nome original faça mais sentido. Quem se encontra a cavalo não é o bife, mas os ovos.

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Voltando às escolhas de Fernando Pessoa, no Restaurante Leão de Ouro tomava sopa de camarão e comia linguado frito. No Hotel Aliance, galo estufado com ervilha e pratos de influência francesa. No Restaurante Irmãos Unidos, melão com presunto, ovos mexidos com chouriço. A casa foi imortalizada no cenário do mais importante retrato do poeta fingidor, pintado em 1964, encomendada pela Fundação Calouste Gulbenkian ao artista multidisciplinar José de Almada Negreiros, figura de relevo na primeira geração de modernistas lusitanos. “Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido”, escreveu Fernando Pessoa.

Bife à Café (Café de São Bento/Reprodução)

BIFE À CAFÉ

Rende 4 porções

INGREDIENTES

.4 bifes de carne bovina com cerca de 200 g cada

.8 dentes de alho esmagados grosseiramente (com casca)

.1 folha de louro

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.1 colher (sopa) de maisena

.100 ml de leite

.80 g de manteiga

.100 ml de vinho tinto

.50 ml de café forte

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.Sal e pimenta a gosto

ACOMPANHAMENTO

.Ovos estrelados e arroz branco

PREPARO

1. Tempere os bifes com sal, alho, pimenta, louro e deixe-os marinar nesses temperos por cerca de 15 minutos.

2. Em uma tigela, misture com a ajuda de uma colher a maisena no leite. Reserve.

3. Em uma frigideira, derreta a manteiga em fogo brando. Adicione os bifes com a marinada e frite-os de ambos os lados. Em seguida, retire-os para um prato.

4. Adicione à frigideira o vinho tinto, o café e a maisena dissolvida no leite. Mexa de vez em quando até o molho engrossar ligeiramente.

5. Retorne com os bifes à frigideira e envolva-os no molho. Sirva quente, com os ovos estrelados e o arroz branco.

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