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Filé à Oswaldo Aranha

O bife malpassado que faz o Brasil recordar uma das suas mais ilustres figuras históricas

Por J.A. Dias Lopes 3 jun 2019, 17h57
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  • Apesar da longa folha de serviços prestados ao Brasil, o advogado, político e diplomata Oswaldo Euclydes de Souza Aranha (1894-1960), um gaúcho que passou boa parte da vida no Rio de Janeiro, é mais conhecido por um bife malpassado. É uma porção alta de carne, pesando de 300 a 350 gramas, dourada em frigideira de ferro. Vai à mesa acompanhada de rodelas de batatas fritas em óleo, chamadas de portuguesas, arroz branco e farofa. Mesmo com preparo elementar, revela-se apetitosa e suculenta, além de proteica.

    Receita clássica da culinária carioca, ao lado do picadinho meia-noite e da sopa Leão Velloso, o bife à Oswaldo Aranha agora é preparado no Brasil inteiro. Em São Paulo, por exemplo, algumas cantinas de cozinha de influência italiana o adotaram com a mesma devoção dedicada às massas. Sabe-se que o prato foi criado em um restaurante do Rio de Janeiro entre os anos de 1931 e 34, por inspiração do homenageado, porém há divergência sobre a identidade do estabelecimento.

    Os descendentes de Oswaldo Aranha sustentam ter surgido na cozinha do extinto A Minhota, fundado em 1912, no antigo centro da velha capital do Brasil, frequentado durante anos por políticos, diplomatas, empresários, escritores e esportistas, entre eles famosos jockeys e craques do futebol. De tanto Oswaldo Aranha fazer o mesmo pedido, o prato recebeu seu nome.

    Oswaldo Aranha, diplomata e político
    Oswaldo Aranha: advogado, político e diplomata gaúcho, que passou boa parte da vida no Rio de Janeiro, onde inspirou a famosa receita de cozinha (//Dedoc)

    Outros restaurantes onde ele também almoçava, incorporaram a receita, só para recebê-lo. Primeiro foi o Cosmopolita, fundado em 1826, ainda em funcionamento na Travessa Mosqueira, 4, na Lapa, apelidado de Senadinho pela clientela de políticos na época. O estabelecimento afiança ser o berço da receita e apresenta testemunhos que avalizam o primado. Quando ministro da Fazenda de Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha despachava de manhã com o presidente, no Palácio do Catete, e às vezes almoçava no Cosmopolita, perto do seu local de trabalho.

    Depois, integrou-se ao grupo o Café Lamas, de 1874, ainda funcionando no Largo do Machado, no Catete, ponto em que esteve por cem anos, atualmente na rua Marquês de Abrantes, 18, no Flamengo. Segundo a lenda, por funcionar 24 horas ao dia o estabelecimento teve problemas com as portas de entrada: elas simplesmente emperraram. “Até hoje dizem que o bife à Oswaldo Aranha preparado no Café Lamas é um dos melhores do Rio de Janeiro”, declarou Zazi Aranha Corrêa da Costa, a neta mais velha do grande brasileiro.

    No Cosmopolita, o homenageado instruiu o cozinheiro uma única vez sobre como queria sua comida e nunca mais precisou repetir o pedido. Entrava no restaurante e o prato já começava a ser feito. Saboreava-o com prazer depois de misturar o suco da carne aos acompanhamentos. Carnívoro voraz, Oswaldo Aranha também apreciava carne de panela e sobretudo churrasco, especialidade gaúcha da qual aprendeu a gostar e preparar no tempo de criança e adolescente, quando viveu na Estância Alto Uruguai, em Itaqui, no Rio Grande do Sul, pertencente ao seu avô paterno, e perto de Alegrete, sua cidade natal.

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    Para um sul-rio-grandense como ele, assar a carne ao calor do fogo ou das brasas significa mais do que uma técnica de cozimento. Representa um cerimonial atávico, uma oportunidade de convivência humana, de estreitar laços de família ou de amizade, uma expressão afetiva. Na década de 1950, em discurso inflamado na cidade de Porto Alegre – era orador brilhante –, Oswaldo Aranha afirmou que, sem o boi e o churrasco, teria sido impossível povoar o Rio Grande do Sul. Estava rigorosamente certo.

    Como os colonizadores europeus e seus filhos com as índias e negras, que originaram o tipo social do gaúcho, poderiam se alimentar e sobreviver naqueles confins meridionais do Brasil, séculos atrás, dispersos em uma imensidão ocupada por manadas bovinas? Referimo-nos ao Pampa, à região natural de coxilhas e canhadas, rios e riachos, coberta por pastagens, que agora compreende parte do território do estado do Rio Grande do Sul, no Brasil, além da Argentina e Uruguai.

    Daí porque os colonizadores passaram a abater os bois que vagavam xucros e a fazer churrasco. Bastava ter uma faca grande afiada e falquejar um espeto em madeira nativa e dura, mais ou menos resistente ao calor. Por sinal, Oswaldo Aranha foi um dos gaúchos que contribuíram para difundir o churrasco no Rio de Janeiro, na década de 30, quando mudou para lá com a Revolução de 1930, que ajudou a deflagrar. Outro seria Getúlio Vargas.

    O gado foi introduzido no Pampa pelos colonizadores espanhóis e portugueses do século XVI. Escapando do controle dos colonizadores europeus, os animais começaram a viver livremente na região. Além de abatê-los para sua alimentação, os pioneiros iniciaram uma atividade econômica rentável – a retirada e comércio do couro bovino, produto de primeira necessidade na época. Mas carneavam tantos bois que sobravam montanhas de carne para as aves de rapina.

    A primeira peça com a qual faziam churrasco era o matambre. Trata-se de uma “manta” larga e firme de carne, porém de sabor intenso, que cobre as costelas do boi depois do couro. O nome é explícito. Viria do espanhol “mata hambre” (mata-fome). Na sequência, assavam a costela inteira. Também apreciavam o saboroso sangrador, corte situado ao redor do local onde golpeavam o animal com a faca, e certos miúdos. Nada de picanha, bife de chorizo e outras iguarias contemporâneas…

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    Veio então a sedentarização do gaúcho nas estâncias, complexos familiares voltados à criação de gado que Paulo Xavier, um dos autores do livro “Rio Grande do Sul – Terra e Povo” (Editora Globo, Porto Alegre, 1964), chamou de “linha mestra do desenvolvimento econômico desta região”. Visitantes antigos se surpreendiam com a dieta carnívora da sua população.

    “O regime alimentar do sul-rio-grandense é o mais conveniente possível, para entreter o vigor e a boa saúde, cujas aparências caracterizam as feições da maioria da população”, escreveu em 1839 o militar, comerciante e viajante francês Nicolau Dreys, no livro “Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de S. Pedro do Sul” (Editora Nova Dimensão Edipucs, Porto Alegre, 1990). ”Em geral, o habitante do Rio Grade do Sul é essencialmente carnívoro.”

    Recente levantamento do Sindicato da Indústria de Carnes e Derivados do Estado do RS, indica que atualmente o gaúcho consome per capita cerca de 50 quilos de carne bovina por ano, o dobro da média nacional. Esse regime alimentar, rico em proteína e nutrientes, em vitaminas do complexo B e sais minerais, ferro, zinco, fósforo, potássio, magnésio e selênio, seria responsável pela alta expectativa de vida do gaúcho ao nascer. Estudos contemporâneos confirmam esse poder. Demostram não haver qualquer evidência de que o fato de comer carne abrevie a vida das pessoas, antes pelo contrário.

    O bife de Oswaldo Aranha era originalmente de alcatra, a peça de carne bovina limitada de um lado pelo coxão, ou seja, coxão duro e patinho. No oposto, encontra-se o contrafilé, ou melhor, o lombo do boi. Claro que para ele escolhiam a parte mais macia. Portanto, certamente recebia à mesa a parte que fica ao lado do contrafilé. Nos últimos anos, porém, a receita de Oswaldo Aranha foi modificada. Trocou a alcatra pelo filé mignon que, por ficar abaixo das vértebras lombares do boi e não ser movimentado durante a locomoção, proporciona maciez excelsa.

    O ilustre brasileiro começou sua trajetória pública atuando nas revoluções ou rebeliões que dividiram o Rio Grande do Sul na primeira metade do século XX. Tornou-se a seguir intendente (prefeito) de Alegrete, deputado federal e um dos principais articuladores da Revolução de 1930, que depôs o presidente Washington Luís e colocou no poder Getúlio Vargas, com quem teve grandes afinidades políticas e discordâncias ocasionais.

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    Vitorioso o movimento armado, assumiu sucessivamente os ministérios da Justiça e Fazenda, a embaixada brasileira em Washington e novamente o ministério das Relações Exteriores. Manteve-se solidário com Getúlio Vargas na deposição do amigo em 1945, apesar de um ano antes ter renunciado ao cargo de chanceler, por sentir-se enfraquecido dentro do governo. Não guardava mágoas.

    Em 1947, na condição de presidente da II Assembleia Geral da ONU, foi um dos articuladores da criação do Estado de Israel. Os judeus o homenagearam dando seu nome a uma rua de Tel Aviv, a outra em Berseba e a uma terceira em Ramat Gan. Também denomina uma praça em Jerusalém e, no Brasil, convém lembrar avenida que batiza no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, símbolo da colonização judaica na capital gaúcha. Em 1942, a “Time”, principal revista de informação dos Estados Unidos, dedicou-lhe uma capa com a chamada “Brazil’s Aranha”.

    Ocupou novamente o ministério da Fazenda no final do segundo governo de Getúlio Vargas, que havia sido eleito presidente da República em 1950 pelo voto direto. Grande orador, fez um discurso de improviso memorável no instante do sepultamento do amigo, que se suicidou com um tiro de revólver em 1954. À beira do túmulo de Getúlio Vargas, em São Borja, no Rio Grande do Sul, falou palavras emocionadas: “Não era possível os teus restos serem recolhidos ao seio maternal de tua terra, sem que antes, tendo contigo vivido os últimos dias de tua vida, eu procurasse, ante a eternidade que nos vai separar, falar contigo, como costumávamos conversar nos nossos despachos, sobre a vida, as criaturas e os destinos do Brasil.” Anos depois, no governo Juscelino Kubitschek, retornou à ONU para comandar a delegação brasileira e encerrar a brilhante carreira pública.

    Faltou indagar se a carne do bife à Oswaldo Aranha foi trocada apenas por ser macia. Não, também se levou em conta a maior facilidade do manuseio. A alcatra precisa ser trabalhada antes de ir ao fogo, ter os nervos retirados e separados em duas partes. O filé mignon está pronto por natureza, basta retirar a fina pele prateada que o reveste, em operação descomplicada. Seguramente, Oswaldo Aranha reprovaria a inovação. Como muitos gaúchos, não era apreciador do filé mignon. Os sul-rio-grandenses consideram esse corte destituído de gordura, pouco resistente ao dente e pobre em sabor. Para o churrasco, nem pensar.

    Com o direito familiar de resgatar o prato do bisavô, a chef Bel Coelho, de São Paulo, incluiu o bife à Oswaldo Aranha no cardápio do seu antigo restaurante, o Dui, no Jardim Paulista Mas igualmente lhe imprimiu certa modernidade. Em vez da alcatra ou do filé mignon, escolheu a fraldinha ou vazio, um corte magro localizado entre a parte traseira e a costela do animal. Serviu-a com purê de alho. Outra releitura do prato original foi acrescentar sobre a carne lâminas de alho frito. Da mesma forma, esse adereço não teria o beneplácito de Oswaldo Aranha. ”Meu avô não gostava de alho”, afirmou Zazi Aranha da Costa.

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    Preparado agora com filé mignon, o bife à Oswaldo Aranha subiu de status. Igualmente, alterou o nome. Converteu-se em filé à Oswaldo Aranha. Afinal, leva um corte mais caro, de revelação conveniente. Se o preço do quilo desse corte sair por 32 reais, o da alcatra custará 18 e a fraldinha 19 – preços obviamente arbitrários, para fins de comparação. Filé, no jargão popular, designa algo superior. Serve até para contradições. Anos atrás, uma revista brasileira de gastronomia chamou a picanha de “filé mignon do churrasco”.

    Oswaldo Aranha teve uma vida rica e movimentada. Bonito, cordial, elegante e sempre bem vestido, admirado pelas mulheres, colecionador de amigos, educado e gentil, era também capaz de atos de impetuosidade e coragem. Em uma das rebeliões gaúchas da década de 1920, investiu sozinho a cavalo, brandindo a espada, contra inimigos entrincheirados em um muro de pedras. Levou um tiro no calcanhar direito e as complicações do ferimento quase resultaram na amputação da sua perna. Ao ser socorrido, embora a hemorragia fosse intensa, pediu que acudissem primeiro os companheiros feridos.

    Trabalhador infatigável, homem culto, estudou em Paris e se formou em Direito no Rio de Janeiro, cidade que dividia seu afeto com o Rio Grande do Sul. Gostava de escrever cartas e pronunciar conferências. Lia bastante, deixando uma biblioteca pessoal com 11.485 volumes. Fumava demais. Morreu em sua residência, na rua Cosme Velho nº 415, no Rio de Janeiro, de ataque cardíaco, dias antes de completar 66 anos de idade. Em relação ao escasso conhecimento atual a respeito de Oswaldo Aranha, sobra um consolo. Há outros brasileiros ilustres de antigamente que não são lembrados sequer por um bife malpassado.

    FILÉ À OSWALDO ARANHA

    RENDE 1 PORÇÃO

    INGREDIENTES

    .300 a 350g de filé mignon

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    .100g de alho cortado em finas lâminas (retire o filete que existe no interior do alho, para o sabor ficar menos ativo)

    .Óleo para fritar

    .Sal a gosto

    ACOMPANHAMENTO

    .300g de batatas à portuguesa cortadas em finas rodelas e fritas em bastante óleo previamente aquecido em temperatura alta

    .Arroz branco

    .Farofa

    PREPARO

    1.Doure as lâminas de alho em uma frigideira de ferro (preferencialmente fundido), com um pouco de óleo quente.

    2.Polvilhe o filé com sal e coloque-o na frigideira, com as lâminas de alho, fritando-o dos dois lados, até atingir o ponto desejado (o ideal é ficar malpassado ou ao ponto)

    3.Sirva bem quente, com as batatas, o arroz e a farofa.

    .Receita preparada no restaurante Cosmopolita, do Rio de Janeiro, RJ.

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