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A rainha do Brasil

A ONU escolheu a mandioca como 'o alimento do século XXI'. Mas é em nosso país, onde provavelmente ela se originou, que reina soberana

Por J.A. Dias Lopes 1 abr 2019, 21h37
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  • Vivemos o século da mandioca, arbusto nativo da América do Sul, cultivado desde os tempos pré-colombianos pelas suas raízes comestíveis. Seria originária do Nordeste e da região central do Brasil. Antes da chegada dos colonizadores europeus, porém, já estava disseminada até a Guatemala e México. Quem proclamou a relevância da mandioca foi a Organização das Nações Unidas (ONU). O organismo intergovernamental criado para promover a cooperação internacional a escolheu como “o alimento do século XXI”.

    De onde veio o prestígio universal das suas raízes em forma de tubérculos? Da versatilidade e importância na alimentação da humanidade. A mandioca fornece às populações alto teor energético e pouca proteína. Proporciona calorias, lipídios, carboidratos, fibras, cálcio, minerais, caroteno e vitaminas do complexo B (tiamina, riboflavina, niacina) e C.

    A primeira referência feita a ela, em língua portuguesa, encontra-se na carta que Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, enviou ao rei D. Manuel I, de Portugal, relatando o descobrimento do Brasil: “(…) Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame (confundia a mandioca com o inhame, que conhecia, vindo posteriormente da África), de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos”.

    Pero Vaz de Caminha e todos os europeus desembarcados a seguir ficaram admirados com as escuras, grossas e longas raízes da mandioca, que os nativos do continente haviam domesticado há pelo menos 8.000 anos. A planta já alcançara no século XVI quase todo o litoral da América do Sul e a América Central, sobretudo as Antilhas, como assinalam Henrique Ataíde da Silva e Rui Sérgio Sereni Murrieta, no trabalho “Mandioca, a rainha do Brasil? Ascensão e queda da Manihot esculenta no estado de São Paulo” (“Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas”, v. 9, n. 1, p. 37-60, janeiro-abril de 2014). Manihot esculenta é seu nome científico. A palavra mandioca veio do tupi-guarani mãdi’og, mandi-ó ou mani-oca, que significa casa de Mani, uma deusa indígena caridosa; esculenta significa alimentícia, que serve de alimento.

    Hoje, mais de oitenta países a cultivam. Na África e na Ásia foi introduzida pelos portugueses. Só os europeus não a plantam. A Nigéria ocupa o primeiro lugar na produção mundial. Seguem-se a Tailândia, o Brasil, a Indonésia e a República do Congo. Aqui e em outros lugares recebe nomes diferentes. No Brasil, chamam-na de aipi, aipim, castelinha, macamba, macaxeira, mandioca-amarga, mandioca-brava, mandioca-doce, mandioca-mansa, maniva, maniveira, pão-de-pobre, pau de farinha e uaipi. Em inglês vira cassava, em francês manioc, em italiano manioca.

    Os colonizadores europeus acharam que a mandioca era uma espécie de pau, aproveitado integralmente pelos nativos. Derramavam seu caldo em um recipiente de barro e o reduziam no fogo, para obter o beiju, primitiva panqueca. Cozinhavam a raiz inteira, consumiam-na pura ou coberta de mel silvestre; ou a transformavam em um purê que acompanhava diversos alimentos. Mas a grande surpresa dos europeus foi ver que os índios descascavam a mandioca, raspavam, secavam, espremiam e ralavam, convertendo-a em uma farinha comestível. O dramaturgo, romancista e ensaísta carioca Guilherme de Figueiredo, no livro “Comidas, meu santo!”, (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1964), afirmou que por algum tempo batizaram aquele exótico pó branco ligeiramente granulado de “farinha de pau”.

    Mandioca
    Mandioca: quando os portugueses chegaram ao Brasil, já era plantada em quase todo o litoral da América do Sul e na América Central, sobretudo nas Antilhas (Julio Ricco/Getty Images)
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    O escritor e pastor protestante Jean de Lery, que esteve no Brasil na segunda metade do século XVI, ainda como seminarista, descreveu admirado, no livro “História de uma viagem feita na terra do Brasil”, lançado na França em 1578, como os índios a saboreavam. “Tomam-na com quatro dedos na vasilha e a atiram mesmo de longe com tal destreza na boca que não perdem um só farelo”, escreveu. “E se nós, franceses, os quiséssemos imitar, não estando como eles acostumados, sujaríamos o rosto, as ventas, as bochechas, as barbas”.

    Os bandeirantes apreciavam tanto a mandioca que ajudaram a difundi-la. Plantavam-na em suas expedições ao interior, nas quais procuravam riquezas minerais, sobretudo ouro, índios para escravizar e finalmente para exterminar quilombos, as povoações que abrigavam escravos fugidos. Quando voltavam pelo mesmo caminho, encontravam um alimento precioso.

    Ela sempre teve enorme importância na dieta nacional – daí receber o título de rainha do Brasil. É saboreada frita, inteira ou em pedaços, como tira-gosto; ou cozida em água e sal, para acompanhar pratos; ou envolvida no melado, em feliz casamento. Nordestinos e nortistas socam a raiz no pilão até transformar-se em paçoca, misturada com carne-seca, castanha-do-pará, amendoim ou rapadura. Em várias regiões do país, esmaga-se a mandioca para obter o amido, conhecido por fécula, carimã, goma ou polvilho, ingrediente fundamental no pão de queijo mineiro, em doces, pudins, broas, biscoitos, roscas, sequilhos e mingaus.

    O mais importante bolo de mandioca do país é o Souza Leão e sua receita divide a família aristocrática homônima, de Pernambuco. Cada ramo do clã garante ter a fórmula genuína. Ultimamente, acredita-se que o bolo surgiu no engenho São Bartolomeu, de dona Rita de Cássia Souza Leão Bezerra Cavalcanti, localizado em Muribeca, agora bairro de Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife. A preparação leva a bagatela de 1 kg de açúcar, 1 kg de massa de mandioca, 4 cocos ralados, manteiga abundante e resulta numa textura que lembra pudim.

    Entretanto, o mais popular derivado da mandioca é aquela farinha que os índios lançavam à boca com pontaria infalível. Trata-se ainda de um produto de inigualável significado histórico e gastronômico. No século XVI, lotava os porões das caravelas que regressavam a Portugal, como farnel de reforço. Os navios de mastros e velas que iam à África transportavam fumo em corda para trocar por escravos e surrões de farinha para alimentá-los a bordo. “A farinha é a camada primitiva, o basalto fundamental na alimentação brasileira”, sentenciou o grande pesquisador do folclore e etnógrafo potiguar Luís da Câmara Cascudo, do clássico “História da Alimentação no Brasil” (Global Editora, São Paulo, 2004).

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    A mandioca triturada se presta à elaboração de farofas. Dourada no fogo, temperada com sal, recebe o nome do ingrediente que a complementa. Converte-se em farofa de manteiga, de miúdos, de ovos, de azeite de dendê etc. Serve para fazer pirões de caldo de carnes, de ave ou peixe, que acompanham pratos de caça, moquecas de mar e vários cozidos; reforça escaldados ou engrossados, sejam de hortaliças ou carnes; enriquece as frituras quando empana alimentos; é essencial no cuscuz paulista, harmonizada à farinha de milho; enobrece cozidos, ensopados e caldeiradas; integra-se às paçocas salgadas ou doces e jacubas; viabiliza tutus, virados e feijão tropeiro; engalana o lombo de porco frito, recheia o leitão e o peru assados no forno.

    Os gaúchos não a dispensam ao comer o churrasco. Antes de colocar na boca a carne assada ao calor das brasas, no espeto ou sobre grelha, envolvem-na em farinha. Afirmam criar “uma cama para a gordura” e ressaltar, por contraste, o sabor do churrasco. Feijoada sem farinha renega a sedução. Quem a recusa não sabe o que perde. O memorialista mineiro Pedro Nava louva essa irresistível parceria no livro “Chão de Ferro” (Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1976), ao ensinar gulosamente como se monta o prato de feijoada: “Edifica-se com superposições de couve, de farinha, de feijão, de farinha, de carnes e gorduras, e do respaldo mais espesso da cobertura final de farinha”.

    Mas no trabalho universitário “A Mandioca na Cozinha Brasileira” (Instituto Agronômico de Campinas, 1983), o professor Araken Soares Pereira e colaboradores se queixam dos imigrantes europeus aportados no Brasil até a primeira metade do século XX. Lamentam não terem se interessado no início pela rainha do Brasil, até porque a desconheciam na terra natal. Foi, porém, uma questão de tempo. Seus descendentes capitularam à mandioca. Hoje, é difícil encontrar um brasileiro de qualquer etnia que não a aprecie, independentemente da merecidíssima consagração da ONU.

    PUDIM DE MANDIOCA

    Rende 8 porções

    INGREDIENTES

    .100g de açúcar para caramelar a fôrma (distribua o açúcar no fundo de uma fôrma de pudim, furada no meio e leve ao fogo brando, mexendo sempre, até o açúcar ficar completamente derretido. Apague o fogo e espalhe imediatamente a calda por toda a fôrma, cobrindo-a por igual)

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    .450g de açúcar

    .200ml de água

    .10 ovos

    .1 colher (sopa) de manteiga sem sal

    .500g de mandioca ralada e depois espremida em um pano, para perder o excesso de líquido

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    PREPARO

    1.Misture os 450g de açúcar com a água e leve ao fogo brando, sem mexer, até obter uma calda em ponto de fio (para saber o ponto certo, segure uma pequena porção de calda entre os dedos polegar e indicador e separe-os. Estará no ponto certo quando se formar um fio entre os dedos). Passe a calda para uma tigela.

    2.Bata os ovos em outro recipiente e acrescente a manteiga.

    3. Junte os ovos à calda, na tigela, batendo com um fouet (batedor manual) e depois incorpore a mandioca ralada e espremida.

    4.Disponha a massa na fôrma caramelada e asse em banho-maria, dentro de uma assadeira com água fervente, em forno brando, preaquecido a 160°C, por cerca de 45 minutos, até o pudim ficar firme.

    5. Depois de pronto, desenforme e sirva.

    Receita preparada pelo chef José Barattino, de São Paulo, SP, herdada de sua avó, Helena Barattino.

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